O silêncio mata

  • 31-08-2022

Escrevo este texto por um imperativo de consciência profissional e pessoal, como enfermeira, cidadã e amiga de quem se vê esquecido, sem respostas e mergulhado numa espiral de silêncio que só adensa medos e dúvidas.

 

Já vimos um filme parecido a este na década de 80, quando a doença da “minoria” foi sendo chutada para um canto até ao dia em que se transformou num enorme elefante no meio sala. Dir-me-ão que neste caso não estamos perante uma doença fatal. Certo.

 

Respondo que o estigma também mata. O surto de Monkeypox (Varíola dos Macacos) que atinge maioritariamente a comunidade homossexual masculina merece ter uma resposta tão decidida e empenhada como se fosse tema de uma maioria. A verdade é que não tem sido.

 

Todos os dias há novos infetados. Quem não se infecta, esconde-se, reduz contactos sociais, limita o toque, castra a sua vida sexual e vive em pânico que ao seu corpo se colem marcas para toda a vida, como um rótulo. Sim. Isto também mata, ou vai matando todos os dias um bocadinho. Quem ignora esta realidade, cultivando inércias ou espirais de silêncio, está a segregar Seres Humanos que merecem ter respostas, cuidados e acesso a uma vacina se essa for a sua vontade. É deste desígnio que não desisto enquanto enfermeira, o de cuidar de alguém da melhor maneira forma que sei, independente das suas caraterísticas individuais. O meu foco é a Pessoa e disso nunca desistirei, até porque acredito que essa é a “Lei” que deve orientar as políticas públicas de saúde. 

 

A 12 de Julho, a Direção-Geral da Saúde publicou uma norma onde definia que a vacinação só estaria disponível como profilaxia de pós-exposição, para pessoas assintomáticas próximas de casos positivos. Passou um mês e meio. Os casos não param de aumentar. Em Espanha, está a ser usada uma nova técnica que permite multiplicar por cinco as doses actuais. No Reino Unido, a Agência de Segurança de Saúde recomenda vacinar os grupos de risco, homens homossexuais e bissexuais. E por cá? Das mais de 2.000 vacinas que chegaram, foram administradas 286. Pasme-se, 286. Ao fim de todo este tempo, Portugal usou cerca de 10% das vacinas que comprou, num cenário de 846 casos confirmados. Alguém tem de explicar estes números.

 

Somam-se ainda outras questões. Porque é que continuamos dependentes de aspectos “técnicos e logísticos” para seguirmos o exemplo espanhol e vacinarmos mais gente? Quando é que as pessoas dos grupos de risco vão ter direito à vacina se essa for a sua vontade? Vir dizer que isso depende da capacitação dos profissionais de Saúde é desculpa de mau pagador. Os enfermeiros estão mais do que capacitados para concretizarem esse processo, até porque essa é a sua missão. 

 

É neste reino do silêncio que vivem milhares de pessoas neste momento. A pergunta final que se impõe é da de perceber se tudo isto estaria a ser assim se, em vez de uma minoria ainda estigmatizada em termos de Saúde Pública, o surto estivesse a afetar casais heterossexuais e crianças.

 

Esta é a questão para a qual exijo resposta como Bastonária, enfermeira, cidadã e amiga de gente que se sente esquecida e com medo.

 

 

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