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15-02-2022
Há sempre a rua

O próximo Governo prepara-se para tomar posse num contexto particularmente desafiante no que diz respeito à Saúde. Desengane-se quem pensa que o pior já passou. Afastada a tempestade, está na hora de começar a pagar o preço da destruição e inação.
O cenário que tínhamos no pré-pandemia não se resolveu por golpes de magia, retórica ou propaganda. O vírus fez-nos cerrar fileiras, esquecer divergências antigas e fazer deste combate um desígnio nacional, mas não dissipou falhas estruturais, antes pelo contrário. Os problemas de acesso agravaram-se, os profissionais continuam a emigrar ou a fugir para o sector privado, os enfermeiros permanecem mal pagos e mais cansados, as carreiras estão esquecidas e a gestão competente foi penalizada.
O pior que o próximo Governo pode fazer é ignorar a força dos sinais dos últimos meses. Para quem ainda não percebeu, cerca de 1 em cada 10 enfermeiros que trabalha no Serviço Nacional de Saúde não aceita assumir responsabilidades perante a incapacidade que tem em garantir cuidados de saúde de qualidade e com segurança. Este é um grito de alerta que não pode ser ignorado. Mais de 4.400 enfermeiros já entregaram os respetivos pedidos de escusa de responsabilidade, um número que triplicou desde Novembro.
Perante este movimento que não vai parar de crescer, o Governo tem duas hipóteses: ou mete a cabeça na areia, ou vem, de uma vez por todas, ouvir e valorizar os enfermeiros. Já ninguém aceita o jogo do faz de conta. Passaram seis anos, com dois anos de pandemia pelo meio. Os portugueses conhecem hoje, melhor do que nunca, o dia-a-dia daqueles que estão ao seu lado nos momentos de maior fragilidade. Os enfermeiros sabem disso e ganharam um redobrado ânimo com esse reconhecimento público. Aos seus gritos de alerta junta-se agora o aplauso da sociedade civil, a mesma que não entendia, em tempos, as razões de greves e manifestações. Vivemos agora um outro tempo. Ignorar este novo amanhecer, em que enfermeiros e sociedade civil se unem na defesa da dignidade de profissionais e doentes, pode constituir um erro histórico, com ou sem maioria absoluta.
O Governo pode decidir continuar a fazer de conta que ouve, negoceia e quer dignificar o papel dos enfermeiros. Uma coisa é certa, se se voltar a esconder nos gabinetes pode ser obrigado a perceber que há sempre a rua.
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