Medo e silêncio

  • 01-03-2022

Eram três e meia da manhã, mais coisa menos coisa. O país dormia sossegado, talvez indiferente ao desassossego que continua a acontecer durante a noite em muitos hospitais. Para uns descansarem, há quem tome a vida dos outros nas mãos, cuidando, protegendo, garantido que ninguém fica sozinho, apesar das horas, apesar da noite.

 

As fotografias que me chegaram daqueles momentos de horror ficarão, para sempre, na minha memória. Um rosto desfigurado, coberto de sangue. Cinco pessoas esbofetearam uma enfermeira de 62 anos e oito fizeram questão de pontapear o corpo e a cabeça do enfermeiro. Num País que respeitasse a dignidade destes profissionais, qualquer um deles já estaria reformado, em vez de serem chamados a assegurar trabalho noturno no SU do Hospital de Famalicão. Era assim até 2009, com a reforma aos 57 anos.

 

Por aqui se percebe que lutar pela redução da idade da reforma não é capricho, mas justiça. Exigir o reconhecimento da enfermagem enquanto profissão de desgaste rápido não é teimosia, é humanidade. Toda a gente entende o racional destas solicitações, basta ter tido alguém, um dia, a precisar de cuidados de saúde.

 

Mas é preciso ir mais além. Estes crimes têm de ser equiparados aos crimes de violência doméstica, crimes públicos que não fiquem dependentes da apresentação de queixa das vítimas. Os enfermeiros estão hoje mais expostos porque o Estado os abandonou, desinvestiu no policiamento das urgências e foi cúmplice do salve-se quem puder.  Aqueles que insistem em perpetuar salários indignos e modelos de carreira anedóticos, são os mesmos que deixam os enfermeiros sozinhos, entregues à sua sorte, expostos à violência e ao medo.

 

Parece agora mais claro aquilo que venho defendendo há vários anos. Vivemos num cenário que justifica a aprovação, de uma vez por todas e sem hesitações, de um subsídio de risco estável, mensal, duradouro e digno, à semelhança daquilo que acontece com as forças de segurança. A vulnerabilidade dos enfermeiros é óbvia e só não vê quem não quer. Aquilo que se passou em Famalicão não é para esquecer, mas para lembrar.

 

 

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