Saudade da rotina dos afectos

  • 03-04-2020

Tânia Ferreira, 39 anos, Enfermeira na Unidade de Saúde Familiar (USF) do Centro de Saúde de S. João do Pragal, tem duas filhas de 9 anos, gêmeas. Por precaução, há um mês que não lhes “toca nem cheira…”. Só de longe as sente. A proximidade dos afectos deixou de ter distância…

 

Por espírito de missão, Tânia decidiu voluntariar-se para trabalhar na Área Dedicada COVID-19 Comunidade (ADC-COMUNIDADE) do respectivo ACES.   

 

O marido trabalha por conta própria, e está impossibilitado de parar a actividade, por variadíssimas razões, uma das quais a própria subsistência da família.

 

Enfermeira há 18 anos, nunca imaginou que um dia, por causa da sua profissão, teria de se afastar das filhas.

 

“Há 21 dias que não toco nas gêmeas, que não as cheiro…”, contou-nos.

 

As meninas foram colocadas em casa dos avós maternos. “O meu marido recordou-me: ‘na saúde e na doença’”, disse, afirmando-se feliz por ter a companhia do pai das suas filhas que, à sua maneira, com sofrimento, também integra o corpo de combatentes contra a covid-19.

 

O pai de Tânia conta 70 anos. Todos os dias fotografa algumas páginas dos livros escolares das netas e os remete por e-mail para a filha. É preciso que as meninas continuem a ser apoiadas nos trabalhos escolares.  Mas, como isso é possível sem a proximidade física?

 

Os pais da Enfermeira residem num condomínio fechado, o que lhes permite ir ao jardim quando por lá não há ninguém. Quando possível, o momento é combinado com Tânia que, à hora marcada, posiciona-se e, desde longe, acena, manda beijinhos, grita aquelas palavras que a emoção trava na garganta quando a dor se chama saudade dos filhos. Toda a rotina daqueles avós é em prol da protecção e bem estar das netas. Nunca saem. A irmã e o cunhado de Tânia, também Enfermeiros, ajudam no abastecimento de bens essenciais. À distância social de sorriso.

 

A ajuda escolar é feita no interior. As duas crianças colocam-se numa sala com a porta de vidro fechada.  Do lado de fora, a Enfermeira tira as dúvidas, coloca questões, ajuda-as nas dificuldades escolares.  São momentos que permitem atenuar a dor. Mas, igualmente dolorosos:  “Falta o toque, o cheiro, o abraço, o beijo”. Tânia diz ter saudades da rotina. “Da rotina dos afectos”.

 

“Vivíamos em função das nossas filhas: ir buscá-las à escola, levá-las à canoagem, às aulas de dança”. Enfim, depois do trabalho o tempo era das gêmeas. “Vê-las brincar ao longe ou através de um vidro é angustiante”, lamenta.

 

A sua decisão em voluntariar-se para a  ADC-COMUNIDADE foi consciente. “Eu sou Enfermeira porque quis ser Enfermeira. Entrei na Escola de Enfermagem com média de 17.2 e comecei a trabalhar com 21 anos naquilo que projectei para a minha vida”. A profissão é de risco e stressante, sabia-o, mas não contava que um dia, por causa da sua opção, iria experimentar a dor que deveras sente.

 

Tânia diz ter esperança que tudo passe rápido, consciente de que depois já nada será como dantes. Mas, confessa, nunca imaginara como iria sentir falta das coisas rotineiras: calar as filhas, chatear-se porque exigem permanente atenção, os saltos a pedir mais um beijo ou abraços. Afectos. “É muito complicado viver privada dos afectos”, lamenta, e pergunta: “Até quando?” “Há tanta coisa que antes nem percebíamos que existiam e que agora queremos tanto agarrar!”. A Enfermeira diz ter descoberto o valor das pequenas coisas tão enormes….

 

O caso de Tânia é apenas um entre centenas de Enfermeiros que combatem o novo coronavírus na linha da frente. Profissionais que abdicaram temporariamente dos afectos para salvar vidas. Que calam para não gritar, e riem para não chorar…

 

O presidente da SRSul enviou uma mensagem de coragem e esperança a todos esses pais que quiseram ser Enfermeiros. “A sociedade, por quem todos os dias arriscamos a vida, e nos aplaude às suas janelas, também nos reconhece e, seguramente, esperamos, irá exigir que sejam corrigidas as injustiças de que somos alvo”, disse Sérgio Branco.