Cuidar da dor

  • 18-06-2021

Neste Dia Internacional da Drepanocitose, que se assinala este sábado, a SRSul saúda todos os Enfermeiros que no seu dia a dia ajudam as pessoas a adaptarem a sua vida aos condicionalismos desta doença, muito marcada pela dor, contribuindo para que possam prosseguir as suas vidas com qualidade e esperança.

 

Catarina Grilo, 37 anos, Enfermeira no departamento de pediatria do Hospital de Santa Maria (serviço de pediatria médica) admite ser difícil a indiferença emocional perante casos humanos tão complexos. “Confesso que no meu dia-a-dia me envolvo emocionalmente com estas crianças e famílias, nutrindo satisfação e recompensa ao verificar que a criança e a família me reconhecem como profissional, demonstrando confiança e solicitando a minha opinião e o meu cuidar durante o tempo de hospitalização”, contou-nos.

 

Esta é uma doença que afeta todo o sistema circulatório e pode causar a morte ou sequelas irreversíveis nos diversos órgãos do organismo humano. Por outro lado, os doentes em situação de crise/descompensação podem apresentar dor intensa ou outras complicações. Cuidar a pessoa com dor será certamente muito complicado, sobretudo emocionalmente.

 

As Enfermeiras Susana Carvalho e Marta Neto, ambas pertencentes ao serviço de pediatria médica de especialidades do Hospital D. Estefânia, juntam-se a esta conversa para explicar que a drepanocitose, ou anemia das células falciformes (ACF), é considerada uma das doenças falciformes mais frequentes e à qual estão associadas manifestações clínicas mais graves como a crise vaso-oclusiva (CVO), a crise hemolítica, o sequestro esplénico, as infeções e as complicações cardíacas, pulmonares, neurológicas ou osteoarticulares.

 

Mas, observam, a CVO é a manifestação mais frequente nas crianças, traduzindo-se numa dor aguda e habitualmente intensa, de localização variável e frequência e duração imprevisíveis. E explicam: “Descrita como ‘facadas’, ‘perfurações’, ‘pancadas’, ‘torturante’ ou ‘insuportável’, sabe-se hoje que a dor decorre da oclusão do fluxo sanguíneo aos tecidos num processo com diferentes fases e vários fenómenos, como sejam a redução do lúmen do vaso sanguíneo, a deformação das hemácias e a inflamação, tornando esta dor e, consequentemente, a intervenção para o seu controlo muito particulares”.

 

Neste sentido, Susana Carvalho e Marta Neto, que decidiram falar a uma só voz, juntando os seus conhecimentos teóricos e práticos – a primeira é mestranda e a segunda é Mestre em Enfermagem -, alertam: “Prevenir os episódios de CVO (de dor) é fundamental para a qualidade de vida destas crianças e consequentemente das suas famílias, seja pelas implicações imediatas com interferência nas diferentes atividades diárias, seja pelas complicações futuras decorrentes da repetição destes episódios”. E sublinham: “Evitar fatores de risco como uma alimentação, hidratação ou repouso inadequados, temperaturas extremas, esforço físico intenso, má adesão terapêutica ou infeções é um dos aspetos cruciais a ter presente, assim como o reconhecimento da necessidade de uma intervenção rápida e eficaz em situação de agudização da doença”. Por isso, lançam aqui este alerta fundamental: “É essencial que a escola e a comunidade onde as crianças estão inseridas, assim como a família, estejam sensibilizadas e informadas sobre esta doença e respetivos cuidados, tornando possível uma adaptação na vida escolar, familiar e comunitária que permita dar resposta adequada às necessidades”.

  

Acrescenta a Enfermeira do Hospital de Santa Maria, Catarina Grilo: “É fundamental também que o Enfermeiro tenha conhecimento e compreenda que estas crianças / adolescentes acabam por ter o seu quotidiano alterado desde o diagnóstico que muitas vezes é efetuado ainda antes de atingirem um ano de idade”. Por outro lado, sublinha, “ao longo da vida vão apresentando limitações, por vezes físicas, e frequentes internamentos que condicionam o seu crescimento e desenvolvimento, modificando o convívio com os pares”. Assim, para Catarina Grilo, “é impreterível que o Enfermeiro ajude a criança a adquirir ferramentas e a usá-las para que o seu desenvolvimento seja o mais saudável possível com as suas limitações de modo a restringir sentimentos como a inferioridade ou a discriminação”. Além de que, nota, “ o Enfermeiro tem também um papel importante na promoção da adaptação da família à transição de saúde – doença.”

 

Voltando a Susana Carvalho e Marta Neto, o controlo da dor é um aspeto crucial do cuidar, e a intervenção do Enfermeiro é essencial, reconhecendo-se hoje a importância de uma intervenção o mais precocemente possível para impedir a evolução da CVO e consequentes complicações imediatas e futuras.

 

Neste sentido, as Enfermeiras defendem: “O controlo da dor é ainda um desafio que se impõe aos profissionais de saúde. Algumas barreiras têm sido reconhecidas como condicionantes de uma intervenção adequada, salientando-se a falta de conhecimento ou crenças infundadas, a falta de visibilidade dada à temática e a inexistência de orientações fundamentadas e sistematizadas”.

 

Mas, suscita curiosidade perceber quais os procedimentos para controlar a dor de uma criança. Respondem, ambas, com saber científico: “De uma forma global, o controlo da dor da criança decorrente de uma CVO implica a administração de analgesia em intervalos regulares, para além de administrações extra em SOS, recorrendo-se a opióides fortes em situações de dor moderada a intensa, como recomendam as últimas orientações internacionais. A utilização de anti-inflamatórios não esteroides tem vindo a ser associada a uma diminuição da intensidade de dor e à redução do tempo de internamento. O recurso a perfusões contínuas de opióides e a dispositivos que possibilitem um controlo seguro das doses administradas pelo próprio (PCA - patient-controlled analgesia) são associados a uma maior satisfação da criança e eficácia no controlo da dor. Às estratégias farmacológicas juntam-se as não farmacológicas, sendo que a aplicação de calor local pelo seu efeito vasodilatador adquire uma relevância particular decorrente da fisiopatologia da doença. Também a hidratação assume um papel relevante na intervenção. Cabe, assim, ao Enfermeiro a avaliação da dor, a implementação das intervenções e a avaliação dos resultados obtidos com alteração do plano se não estiver a ser eficaz, assim como o respetivo registo para promoção da continuidade de cuidados.”

 

Compreende-se a importância desta descrição fundamentalmente farmacológica. Mas, interessa-nos também a postura do Enfermeiro perante a dor do doente. Elas explicaram-nos: “Cuidar para o controlo da dor implica reconhecer a complexidade e subjetividade que lhe é inerente. A criança com ACF vê no Enfermeiro alguém em quem pode confiar, que acredita em si quando diz que tem dor, que a compreende e que a ajuda no controlo da mesma. Junto da família, para além da sua capacitação para a intervenção perante esta situação, o papel do Enfermeiro passa também por apoiar e ajudar na compreensão da dor da sua criança, que se pode manifestar de formas diversas a cada momento e localizar-se numa zona ou em várias simultaneamente, o que nem sempre é fácil de entender.”

 

Na verdade, não é só no hospital que este cuidar acontece. Segundo Catarina Grilo, “estes doentes necessitam também de realizar terapêutica em domicílio e ter alguns cuidados que quando cumpridos melhoram a qualidade de vida e diminuem o número de internamentos.” Conforme explicou, “fazem em domicílio antibiótico profilático, hidroxiureia (com o intuito de minimizar a ocorrência de crises vaso-oclusivas assim como sequestro esplénico) e suplemento de acido fólico que apresenta um papel fundamental na formação das hemácias (pois o organismo para compensar a anemia tenta produzir glóbulos vermelhos)”. São também acompanhados em hospital de dia onde realizam mensalmente colheitas, transfusões e penicilina IM.

 

Os internamentos, para além da instabilidade emocional que naturalmente provocam na pessoa doente, arrastam consigo outras complicações que exigem do Enfermeiro um cuidar muito para além da doença. Porque, por vezes, as crianças veem-se sozinhas.

 

Conforme nos explicou Catarina Grilo, a legislação portuguesa, ao nível da proteção na parentalidade, até é bastante generosa nas possibilidades oferecidas aos pais para acompanharem os seus filhos nos períodos de internamento. Mas, observa a Enfermeira, “na maioria dos casos a família não usufrui, ou por falta de conhecimento ou devido a trabalhos precários e baixos recursos”.

 

Por isso, o alerta de Catarina Grilo, para o sistema, para todos nós: “Há crianças que durante o internamento ficam sem acompanhamento parental durante o dia ou durante todo o internamento”.

 

Na atual situação de pandemia, o problema ainda mais se agravou. De acordo com a Enfermeira, as crianças e seu acompanhante são testados à entrada e durante o internamento não se podem ausentar da instituição/serviço. Mas, assegura, “o que se tem verificado é que por vezes o acompanhante opta por não permanecer durante o tempo de internamento de modo a não ficar desempregado.” Ou seja, há crianças nos hospitais sem acompanhamento familiar. Deixamos aqui o alerta.

 

A melhoria dos cuidados nesta área constitui um foco de esperança para quem tem de conviver com esta doença e terá repercussões no seu futuro, seja na forma de lidar com episódios de CVO, seja em diversos outros aspetos da vida, considerando o domínio psicológico, social ou físico.

 

Neste sentido, as Enfermeiras de D. Estefânia, Susana Carvalho e Marta Neto, entendem que a divulgação, como esta que aqui fazemos a propósito do Dia Internacional da Drepanocitose, “é fundamental para que todos os profissionais de saúde dos diferentes contextos sejam sensibilizados para as necessidades das pessoas com ACF e para a importância de uma intervenção precoce e particular no controlo da dor”. Por outro lado, salientam, esta sensibilização “ajuda também a que a comunidade esteja desperta para as necessidades específicas destas pessoas e para as condicionantes que a doença traz às suas vidas.”

 

Será também importante, na opinião de ambas as Enfermeiras, “a existência de diretrizes com orientações para os profissionais ao nível dos serviços de urgência”. Tais orientações, dizem, possibilitariam “otimizar o tempo que medeia desde a procura de cuidados de saúde e o início de uma intervenção adequada”. Mas, ao que parece, segundo explicaram, “estão já a ser feitos trabalhos nesse sentido”. Entendem ainda que “seria igualmente importante a criação de protocolos extensíveis aos serviços de internamento que possibilitassem uniformizar as práticas, ultrapassar barreiras e promover uma intervenção mais atempada e eficaz no controlo da dor”.

 

Ficam aqui as sugestões destas duas Enfermeiras, a que acrescem as suas reflexões, assim como todos os excelentes contributos da Enfermeira Catarina Grilo, do Hospital de Santa Maria, com todos os agradecimentos por parte da Secção Sul da Ordem dos Enfermeiros – e do seu Conselho de Enfermagem Regional (CER) - ficando nós perfeitamente convictos de que aperfeiçoar modelos de boas práticas, sensibilizar de uma forma global para a temática, capacitar as crianças e as suas famílias, e capacitar ainda mais os profissionais, são fatores cruciais para perspetivar uma melhoria dos cuidados prestados e promover a qualidade de vida das pessoas com drepanocitose.