Vida para além da morte

  • 19-07-2021

Estes Enfermeiros têm uma particularidade muito especial: sabem ver vida onde outros, quase todos os outros, vêem só morte. A SRSul saúda-os a todos nesta terça-feira, 20 de Julho, em que se assinala o Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação. Trata-se de uma área da saúde complexa que envolve emoções muito fortes e situações psicologicamente muito traumáticas que só uma formação muito sólida e uma personalidade bem estruturada permitem suportar. Recolhemos o testemunho da Enfermeira Vanda Palmeiro, assessora na Coordenação Nacional da Transplantação, do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, que nos fala da vida para além da morte.

 

António, nome fictício, era um motard apaixonado… “Apaixonado pela mota” – clarifica a mãe dele ainda no interior da Unidade de Cuidados Intensivos (UCI). Os olhos daquela mãe mantinham-se fixados na máquina que atesta ainda o bater do coração, e com a mão a apertar a mão do filho que se denunciava ainda de corpo quente. O Enfermeiro está mesmo ao lado e confirma-lhe que o António, na verdade, já morreu, embora nele exista vida que ainda pode dar vida, ou maior qualidade de vida, a outras pessoas. Tratava-se de uma mulher com pouco mais de 50 anos, bem formada e informada, que logo percebeu o alcance das palavras do Enfermeiro. Apenas disse: “Deixem-me dar-lhe um último beijo e que no funeral não se note que lhe foram retirados os órgãos”. Os dois abraçaram-se em silêncio…

 

Correu bem. Felizmente, as coisas correm quase sempre bem. Numa outra ocasião, o Enfermeiro percebeu que um dos órgãos da pessoa acabada de entrar em morte cerebral seria compatível com alguém à espera de transplante. O médico confirmou aquela compatibilidade e solicitou a extração imediata. O Enfermeiro informou a família do que se estava a passar acabando por receber um rotundo não. Os familiares opunham-se a que aquela jovem mulher fosse dadora de órgãos. Foi depois consultado o Registo Nacional de Não Dadores  e constatou-se que, apesar da oposição, nenhum impedimento legal havia para a extracção. A família ameaçou avançar com um processo-crime contra o médico e contra o hospital. O Enfermeiro explicou depois que caso morra a pessoa que aguarda o transplante, por não ter recebido o órgão disponível naquela mulher em morte cerebral, o médico também se arriscaria a um processo crime por não ter salvo uma vida, tal como exige o código deontológico que jurou cumprir. O dilema era evidente. O órgão foi mesmo extraído.

 

Conforme esclareceu Vanda Palmeiro, o Registo Nacional de Não Dadores (RENNDA) - criado com o objetivo de viabilizar um eficaz direito de oposição à dádiva, assegurando e dando consistência ao primado da vontade e da consciência individual nesta matéria – é muito pouco requisitado pelos portugueses. O seu significado é residual, representando menos de um por cento da população. Ou seja, todos os portugueses são doadores de órgãos, excepto se a oposição for declarada formalmente.

 

Estamos, contudo, perante uma realidade muito singular. A vulnerabilidade das pessoas é tão evidente que o cumprimento da lei, sem a envolvência da família, só acontece em casos limite. O diálogo com os familiares da pessoa em morte cerebral, para a doação de órgãos, é sempre a opção, embora muito difícil. Vanda Palmeiro muitas vezes teve de recorrer a metáforas: a viatura que na descida se mantem em andamento, mas que vai seguramente estagnar em piso plano porque o motor perdeu a força necessária para prosseguir a marcha; ou a rosa muito bonita colocada numa jarra depois de colhida do meio natural. Vemo-la muito viçosa, mas sabemos que deixou de ter a ligação à terra-mãe que lhe alimenta a vida. Metáforas para ajudar um familiar a aceitar o fim de um vida e que aquele fim pode ser o reinício, a continuidade, a esperança de outra vida - ainda que continue a ver na máquina o bater do coração e a sentir o calor na mão que não quer largar. 

 

Conta Vanda Palmeiro: “Tentamos comunicar aos familiares que o doente está em morte cerebral. Mas, quando olham para o monitor e vêem as mesmas linhas, os mesmos valores de há dois dias e que, então, a pessoa ainda se encontrava viva... Como é que um familiar percebe isto? É difícil dizer a um familiar que o doente já está morto quando ele sente o corpo ainda quente e vê o coração bater...”.

 

Não será fácil. “Compete ao Enfermeiro sentar-se ao lado da família e demonstrar que apesar de o coração bater, apesar de a pessoas estarem ainda quentes, não há qualquer estímulo ao qual o doente responda. Diz a Enfermeira: "A generalidade da população associa a vida ao bater do coração… não associa a vida à função cerebral”. E sublinha: “Os profissionais de saúde, sobretudo os médicos e enfermeiros, sentem-se inibidos ao falar da morte com os familiares do doente. Parece que estamos todos formatados para falar sempre sobre a vida, sobre a esperança. Quando o tema é a morte tenta-se fugir ao assunto e a pessoa fica sem perceber. ‘Está em coma e as pessoas acordam do coma’ – é o que os familiares costumam dizer. O Enfermeiro tem o papel preponderante de desconstruir o que dizem, levando-as a aceitar a realidade e a evitar um processo de luto conturbado”.

 

Estas mortes raramente acontecem num contexto em que já se havia iniciado um processo de luto. “Quando já está diagnosticado um tumor, com ciclos programados de quimioterapia, e vê-se a pessoa a se degradar de dia para dia, vamo-nos despedindo a pouco e pouco. Aqui, estamos a falar quase sempre de morte inesperadas. Os familiares não estavam minimamente preparados…”, explicou.

 

 “São momentos muito complicados”, admite. “Foi no INEM que adquiri um gosto especial pela área da doação e da transplantação. Fui assistir a uma palestra de um médico espanhol que fazia muitas colheitas de órgãos em dadores em situação de paragem cardio-circulatória – técnica usada em Portugal só muito mais tarde - e fiquei fascinada.  Era para supostamente ter demorado 15 minutos, mas demorou 40, e ninguém o mandou calar. Cativou-me a forma como conseguiu valorizar o facto de encontrar vida onde os outros viam apenas a morte”.

 

Tal como noutras áreas da saúde, também nesta se exige muita formação, não só sobre o processo de identificação dos dadores, sobre a preservação dos órgãos, mas também sobre como comunicar com os familiares dos doentes. “Formação cuja frequência não é tanta quanto a desejável, mas tenta-se que seja pelo menos bi-anual”, disse, classificando de "fundamental" o papel do Enfermeiro nesta área. “É a peça do xadrez que move tudo. Não diria que pode fazer xeque-mate, mas é um peão que pode jogar muita coisa e fazer toda a diferença”.

 

Porquê? Responde num ritmo acelerado de frases soltas, mas com sentido: “Na urgência quem passa mais tempo junto dos doentes são os Enfermeiros; quem alerta os médicos para as alterações de sinais ou para qualquer evento que não tivesse sido descrito são os Enfermeiros; quem está 24 horas junto dos doentes são os Enfermeiros; são estes que fazem as avaliações constantes, as toiletes respiratórias para se saber se há ou não estímulos da parte respiratória; ou seja, o Enfermeiro, além de estar muito mais tempo e próximo do doente, é também quem tem a capacidade de avaliar alterações neurológicas que podem ocorrer e alertar o médico para essa situação e poder eventualmente detetar casos de possíveis dadores. A identificação do possível dador pode e deve se feita pelo Enfermeiro.”

 

Segundo Vanda Palmeiro, um doente que entra em morte cerebral numa UCI dá muito trabalho, sobretudo nas primeiras horas. É alguém extremamente instável, com muitas alterações hemodinâmicas e metabólicas. “Isto exige aos Enfermeiros muita atenção, uma vigilância muito apertada, competências  acrescidas em termos de  cuidados intensivos para que o dador não se perca”, explicou.

 

Contudo, o reconhecimento do papel dos Enfermeiros nesta área não é, de todo, uniforme. Há hospitais que o valorizam e que têm nomeados na equipa do coordenador um Enfermeiro “co-coordenador”, isto é, nomeiam um Enfermeiro para colaborar com o coordenador hospitalar de doação. Há também hospitais sem qualquer Enfermeiro envolvido no processo…(ver aqui número de órgãos transplantados).

 

Conhecem-se, no entanto, bons exemplos. Em Portugal todos os hospitais com valências de UCI podem incluir a rede nacional de doação. Esta rede é actualmente constituída por 52 hospitais dadores - públicos e privados.  Depois existem cinco Gabinetes Coordenadores de Colheita e Transplantação (GCCT): hospitais de S. José e Santa Maria, em Lisboa, hospital de Coimbra, e os de S. João e Santo António, no Porto. Cabe a este gabinetes gerir todo o processo em termos de alocação de órgãos. São José, Santa Maria, e Santo António têm como director um Enfermeiro. Nos outros dois, o director é um médico. O cargo de coordenador nacional de transplantação é exercido por um médico por imposição da própria lei. Vanda Palmeiro, colocada no Instituto Português do Sangue e da Transplantação, assessoria toda a coordenação nacional, lidando frequentemente com enfermeiros e médicos.

 

Porém, há ainda muito trabalho a realizar no sentido de uma maior valorização do papel do Enfermeiro neste sector da saúde. Inclusivamente, ao nível da sensibilização junto dos próprios Enfermeiros.

 

Conforme explicou, ainda muitos Enfermeiros, “bons profissionais”, entendem que optaram pela profissão para lidar com a vida e não com a morte. “É uma perspectiva que se altera quando se percebe que há vida onde parece existir apenas morte”, assegura.

 

Por outro lado, raramente no site de um hospital se encontra a divulgação dos cursos de coordenação de doação, conhecidos como TPM (Transplant Procurement Management), de modo a que os interessados, que realmente gostam da área, possam aceder e inscrever-se livremente. Sem esta divulgação pública, os cursos são organizados e, geralmente, frequentados por profissionais indicados pelas chefias, e não propriamente por quem tenha interesse e gosto. Vanda recorda que teve de pagar do seu bolso 900 euros para fazer o curso, enquanto que o médico a seu lado, tendo sido indicado pela instituição, nem um cêntimo pagou.

 

Garante Vanda Palmeiro: “Quando as pessoas fazem o curso com vontade, a actividade de colheita  de órgãos nesses hospitais logo aumenta. Se temos pessoas motivadas, interessadas pela área, temos trabalho bem feito… tendo pessoas que são indicadas para os cursos só porque sim… não resulta em nada… esqueça…. É só para o currículo…”.

 

Vanda Palmeiro admite que os 900 euros para fazer o curso foram bem empregues - dinheiro que poderia ter poupado se tivesse sido indicada pela direcção de enfermagem. Recorda com carinho o dia em que, estando a desenvolver um gravidez de risco, decidiu entrar no auditório do Hospital para ouvir a médica coordenadora de doação sobre o trabalho desenvolvido na instituição. Os números que apresentou eram muito bons, com ótimos resultados, e sem que estivesse à espera, e sem que ninguém soubesse da sua presença ali, ouviu a responsável afirmar que os resultados obtidos foram possíveis porque na sua equipa existe uma Enfermeira motivada, que trabalha com gosto, e com um sentido muito profundo do que significa a vida e o valor da vida. “A médica desconhecia a minha presença ali. Aquele elogio público, inesperado, fez-me sentir que, sim, vale a pena ser Enfermeiro.”

 

“Sim, gosto muito do que faço. Mas, não é fácil. Estamos a analisar um processo e olhamos para a história por trás daquela dádiva, vemos uma pessoa ainda jovem, numa situação totalmente inesperada, e pensamos que poderia ter acontecido a qualquer um de nós. Pensamos que a família deve estar num sofrimento atroz, e respiramos fundo duas ou três vezes…. Depois, olhamos para a dádiva e percebemos que o jovem foi dador de pulmão, de coração, de rins, de fígado, de pâncreas e salvou cinco vidas, seis vidas, ou, mesmo não tendo salvo, ajudou a que a vida de alguém passasse a ser vivida com mais qualidade, com mais condignidade…  lidamos com a morte para que haja vida, lidamos com a vida para além da morte…”.

 

A SRSul, na pessoa do seu presidente, Enfermeiro Sérgio Branco, e também o responsável pelo conselho de enfermagem regional, Enfermeiro Marco Job Batista, agradece à Enfermeira Vanda Palmeiro o seu inestimável testemunho para nos ajudar a celebrar o Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação. A SRSul estende o agradecimento a todos os Enfermeiros que, com gosto, com empenho, todos os dias encontram vida onde outros apenas vêem morte – dignificando a vida e a Enfermagem. Bem hajam!