Mau sono, vida má

  • 19-03-2021

Os Enfermeiros dormem menos do que é devido. A média é de seis horas, revela um estudo dos investigadores Paulo Seabra, Joaquim Lopes e Mariana Calado - da Escola de Enfermagem (Lisboa) do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa.

 

Os que trabalham por turnos, 72,4%, disseram precisar de dormir - mais ou muito mais - entre turnos da manhã seguidos; ao passo que 49,1% disseram precisar de dormir - mais ou muito mais - entre turnos da noite seguidos. Entre os que não trabalham por turnos, 42,2% referem também que necessitam de dormir mais ou muito mais.

 

Quase metade dos Enfermeiros (45,7%), solicitados para se compararem com a maioria das pessoas, referiu que tende a sentir cansaço mais cedo ao final do dia; e um terço (32,2%) consideram ser do tipo de pessoa que adormece facilmente em qualquer lugar. 

 

Em resumo, os investigadores concluíram que, entre os Enfermeiros que fazem turnos, 90,5% consideram que não dormem o suficiente entre turnos de noite seguidos; 79,6% consideram que não dormem o suficiente entre turnos de manhã seguidos. Dos Enfermeiros que não fazem turnos, 81,5% consideram que não dormem o suficiente.

 

Conclusão: os Enfermeiros têm problemas com o sono, segundo aquele estudo. Neste Dia Mundial do Sono, homenageamos todos os Enfermeiros que na linha da frente enfrentam a batalha contra a covid- 19, sem tempo, sequer, para pensar em dormir. Recorde-se que um estudo recente, promovido pela Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), mostrou que entre 105 profissionais de saúde inquiridos, metade dos quais trabalhou com doentes infectados com covid-19, 75% tiveram pelo menos dificuldade em adormecer e 85% acordaram frequentemente com a sensação de um sono não reparador. Aqueles profissionais de saúde questionados não tinham qualquer patologia prévia relacionada com o sono e não faziam medicação para induzir o sono – foram claramente afectados durante esta crise sanitária.

 

Saudamos também os Enfermeiros que no seu trabalho do dia a dia se preocupam em promover junto dos doentes estratégias promotoras do sono, proporcionando-lhes uma maior qualidade de vida.

 

Abuso de fármacos

Mas, aprofundemos o “mau” sono dos Enfermeiros, com a ajuda de Artur Filipe Lé dos Santos, 36 anos, autor de uma tese de Mestrado intitulada “Qualidade do Sono dos Enfermeiros a Trabalhar por Turnos – Conhecer para Intervir”.

 

Especialista em Enfermagem Comunitária, Artur Lé dos Santos lembra “que em Portugal, actualmente, mais de 50% das pessoas têm algum problema de sono”. E revela: “Em 2018 foram vendidas só em Portugal cerca de 10,5 milhões de embalagens de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos”. E conclui: “isto é revelador do seu uso para ‘tratar’ os problemas relacionados com o sono de forma abusiva”.

 

A verdade é que passamos cerca de 1/3 da nossa vida a dormir, o que por si só é revelador da sua importância. Porém, considerando um adulto em idade activa, em média, segundo o Enfermeiro, dormimos menos que isso (entre 6 a 8 horas) quando o ideal seriam (7-9 horas). E, alerta, “dormir menos do que precisamos tem implicações nas funções que o sono desempenha”.

 

Importância do sono

Em primeiro lugar, precisamos do sono como forma de manutenção das funções do corpo, ou seja, é através do sono que restabelecemos o equilíbrio do corpo, essencialmente através de fenómenos de reorganização celular e de regulação hormonal e metabólica. Não menos importante, tenha-se também presente as funções do sono na manutenção da integridade do sistema nervoso central, na consolidação da memória a longo prazo e na incorporação das aprendizagens diárias nas nossas experiências anteriores.

 

Trabalho por turnos

Os Enfermeiros, na sua maioria, trabalham por turnos. Eles são responsáveis por cuidar da saúde das pessoas, famílias, grupos e/ou comunidades. É um grupo de trabalhadores cuja exigência do exercício profissional (física, cognitiva, emocional e social) é preponderante. Por outro lado, o ambiente em que desenvolve a sua actividade acarreta riscos e perigos característicos, sendo estes associáveis a taxas de morbilidades relevantes em termos de incidência e de prevalência.

 

Neste contexto, Artur Lé dos Santos alerta: “Os distúrbios relacionados com o trabalho por turnos são a terceira condição médica que mais afecta o sono, com uma prevalência de 22%. Esta condição apenas é ultrapassada em prevalência pelas insónias (37%) e as roncopatias (29%)”.

 

E esclarece: “Se pensarmos que a insónia é mais prevalente na mulher e que a Enfermagem é exercida maioritariamente por mulheres, facilmente se percebe que as Enfermeiras estão mais suscetíveis a apresentar, cumulativamente, estes dois tipos de afectação médica do sono”. Mas, explicou, há outros factores (não médicos), que também influenciam o sono, nomeadamente a ansiedade e o stress. No caso dos Enfermeiros, é notória a carga de stress associada ao exercício da profissão.

 

Sono de má qualidade

Muito importante também é perceber que a má qualidade do sono, principalmente a privação do sono inerente ao trabalho nocturno, tem consequências diversas no indivíduo. Por exemplo, o aumento da sonolência, a diminuição do desempenho psicomotor, os lapsos de atenção e as dificuldades de concentração, tempo de reacção prolongados, memória recente diminuída, mau humor, sensação de fadiga e irritabilidade que podem chegar a um estado confusional. Evidentemente que estas consequências expõem o Enfermeiro a riscos acrescidos de segurança na prestação de cuidados e nas relações conjugais e familiares.

 

“A título de exemplo - diz Artur Lé dos Santos - o estudo que realizei sobre a qualidade do sono dos Enfermeiros a trabalhar por turnos (incluindo turnos nocturnos), numa amostra de 51, mais de 60% tinham má qualidade de sono de acordo com o Índice de Qualidade de Sono de Pittsburgh.”

Os profissionais de saúde que trabalham por turnos estão, assim, sujeitos a algo que não é natural e, por isso, estão obrigados a cuidados redobrados. São mais de 59 milhões em todo o Mundo. Todos os dias são expostos a uma variedade complexa de riscos para a saúde e para a segurança que incluem, entre outros, riscos psicossociais.

 

Sublinha Artur Lé dos Santos: “Esses riscos interferem não só com o indivíduo, mas também nas relações familiares (exemplo disso é a taxa de divórcio mais elevada) e sociais (horários diferentes das rotinas da maioria dos cidadãos) e pode também afectar a qualidade e a segurança dos cuidados prestados”. Por outro lado, acrescenta, “o indivíduo é mais suscetível a doenças gástricas e cardiovasculares, diabetes, depressão, demência (Alzheimer), excesso de peso e obesidade e a doença oncológica, principalmente cancro da mama.”

 

Alerta o Enfermeiro: “A privação do sono afecta negativamente a imunidade, facto que é particularmente relevante numa altura em que se constata a exaustão dos Enfermeiros envolvidos no combate à pandemia”.

 

A propósito, recorda que, em Fevereiro deste ano, o Journal of Psychosomatic Research publicou uma revisão sistemática e meta-análise sobre a prevalência do stress, depressão, ansiedade e distúrbios de sono dos Enfermeiros durante a pandemia da covid-19. Foram incluídos 93 estudos para um total de 93112 Enfermeiros e os resultados são alarmantes: revelaram prevalências de 43% de distúrbios de sono, 43% de stress, 35% de depressão e 37% de ansiedade.

 

Precaver a higiene do sono

Os Enfermeiros podem recorrer às medidas habituais de higiene do sono e a outras mais específicas relacionadas exclusivamente com o trabalho por turnos, especialmente os nocturnos.

Como medidas de higiene do sono devem implementar aquelas que se relacionam com o ambiente, como o uso do quarto apenas para dormir e para a actividade sexual. O quarto deve ter um ambiente calmo, relaxante e com temperatura agradável, limitando a exposição à luz natural e à luz brilhante dos ecrãs. 

 

Devem ser tomadas medidas relacionadas com o consumo de nicotina nas 4-6 horas antes de dormir e com a dieta, limitando a ingestão de bebidas alcoólicas, cafeína, líquidos e alimentos muito calóricos e de difícil digestão próximo da hora de deitar. O exercício físico regular é também aconselhado, embora para algumas pessoas deva ser realizado até 3 horas antes de deitar. É também muito importante ter uma rotina de relaxamento antes de dormir e manter um horário de sono regular (este último muito mais difícil de cumprir para quem trabalha por turnos).

 

Existem ainda medidas farmacológicas que podem ser consideradas, embora não haja ainda consenso relativamente ao tipo e indicações de uso de hipnóticos para dormir no período diurno após turno nocturno, assim como em relação à utilização, por exemplo, de modafinil para aumentar o estado de alerta durante o turno nocturno. Segundo Artur Lé dos Santos, “é recomendável a consulta de um especialista em sono caso o Enfermeiro não esteja a conseguir solucionar as perturbações do sono sem recurso a fármacos.”

 

Responsabilidade das empresas

Fazer um diagnóstico de situação dos colaboradores que fazem turnos é essencial para se definir estratégias dirigidas a uma diminuição dos efeitos negativos que os turnos têm na qualidade do sono, na qualidade de vida e na qualidade dos cuidados e segurança do profissional e da pessoa alvo dos cuidados.

 

“Não só porque 4% do PIB é gasto com acidentes de trabalho e doenças profissionais evitáveis, mas também porque a instituição empregadora tem ao dispor o serviço de saúde ocupacional e assim cumprir a sua responsabilidade de promover e proteger a saúde dos trabalhadores e prevenir riscos profissionais”, esclarece o Enfermeiro.

 

De um modo geral, as escalas (horários) devem ser adaptadas aos ritmos circadianos e ao cronótipo do Enfermeiro (matutino, intermédio ou vespertino).

 

Adianta Artur Lé dos Santos: “Apenas para dar um exemplo, repare que com o avançar da idade há uma tendência crescente para a matutinidade, menor flexibilidade dos hábitos de sono e tendência para desaparecer a tipologia vespertina, principalmente a partir dos 50 anos. Ora, esta evidência sugere que se possa equacionar uma discriminação positiva dos colegas com idade mais avançada na dispensa do trabalho noturno, principalmente após os 50 anos.”

 

É, pois, importante - aconselha o Enfermeiro -  que a entidade empregadora, chefias, e o próprio trabalhador, tenham em consideração que os turnos não devem exceder as 10-12h; que quanto maior o número consecutivo de turno menor é a qualidade e a duração do sono; que a rotação deve ser no sentido horário (manhã, tarde, noite) e rápida, ou seja, evitar a rotação do tipo manhã, manhã, tarde, tarde, noite, noite. Até porque é de evitar fazer duas noites seguidas para minimizar os efeitos na qualidade de sono.

 

Conselhos práticos

O Enfermeiro deve dormir uma sesta antes do turno nocturno. Este hábito está associado a uma diminuição dos acidentes e ao aumento do estado de alerta e do desempenho.

 

“Embora seja controverso do ponto de vista da nossa cultura de trabalho, o que nos diz a evidência é que ao Enfermeiro deve ser dada a oportunidade de intervalos de descanso regulares e a realização de uma ou mais sestas, de 30 minutos a duas horas, como forma de compensar a sonolência, melhorar o desempenho e diminuir riscos e consequências do trabalho nocturno”, alerta ainda Artur Lé dos Santos.

E conclui:  “Complementarmente ao esforço do Enfermeiro em diminuir o impacto do trabalho por turnos é importante, também, que se sinta devidamente retribuído pelos riscos acrescidos a que está exposto”.

 

Os doentes

E como lidar com as pessoas em situação crítica internadas nos hospitais? Para abordar este assunto, contamos com a ajuda da Enfermeira Carla Valente, do CHUA – Faro. Especialista em Enfermagem Médico-Cirúrgica, Carla Valente é autora do trabalho “A Promoção do Sono na Pessoa em Situação Crítica”, elaborado para obtenção do Grau de Mestre, onde alerta:

“Os doentes internados em unidades de medicina intensiva apresentam perturbações do sono podendo, assim, existir o agravamento da sua situação clínica, confusão, sentimentos de frustração e depressão.”.

Segundo a Enfermeira, “os doentes com alteração do padrão de sono apresentam mais sensibilidade à dor, sendo necessário o uso de mais analgésicos, além de consequências a nível cognitivo, metabólico, imunológico e desequilíbrio no sistema nervoso simpático-parassimpático”.

 

Assim, em seu entender, é fulcral a intervenção do Enfermeiro para que exista um controlo eficaz dos problemas associados à privação do sono. O que deverá fazer, sublinha, “é implementar estratégias promotoras do sono, contribuindo para a diminuição das consequências causadas e para a qualidade de vida dos doentes”.

 

Conforme adiantou, as razões para a interrupção do padrão de sono são multifactoriais e incluem factores intrínsecos, como a situação clínica da pessoa, a dor e a ansiedade; assim como factores extrínsecos, nomeadamente os ambientais, ou seja, “tudo o que rodeia a pessoa na unidade, incluindo os equipamentos e as condições que o serviço apresenta (ruído e iluminação); e a prestação de cuidados de enfermagem”.

 

Acrescenta Carla Valente: “O sono é essencial para a manutenção do estado geral de saúde, pois é considerado como parte integrante da vida do ser humano e uma necessidade básica imprescindível na restauração física e psicológica, contribuindo para o seu bem-estar e conforto”.

 

Neste sentido, aconselha: “O Enfermeiro, ao Promover o Padrão de Sono da Pessoa em Situação Crítica, deve implementar estratégias e protocolos, em coordenação com a equipa multidisciplinar, para que as reais necessidades da pessoa sejam satisfeitas, promovendo o bem-estar e o conforto físico, psíco-espiritual, ambiental e social”.

 

A Homenagem

O Conselho de Enfermagem Regional, da SRSul, presidido pelo Enfermeiro Marco Job Batista, pretendeu, desta forma, sensibilizar todos os Enfermeiros para a importância do sono, na vida pessoal, familiar e profissional de cada um. O presidente do CER apela para que todos os Enfermeiros se preocupem com a qualidade do seu sono, pois isso afecta a segurança individual e a qualidade dos cuidados prestados.

 

Para o presidente da SRSul, Sérgio Branco, pretende-se também, neste dia, homenagear todos os Enfermeiros que, envolvidos no combate à pandemia, se encontram impedidos de viver com total qualidade de vida. Deseja-se, diz, que esta pandemia passe depressa para que todos possam desfrutar de um sono, de muitos sonos, reconfortantes. “Porque merecem”, frisou.