O olhar de quem olha

  • 10-02-2022

Neste Dia Mundial do Doente, a SRSul saúda todos os Enfermeiros que encaram o doente como sendo mais importante do que a doença e se mostram disponíveis para assumirem a profissão como uma missão. Enfermeiros que nunca deixam ninguém sozinho. Em homenagem a eles, a SRSul recolheu vários depoimentos de pessoas envoltas pela doença para quem os Enfermeiros são “tudo” o que de melhor oferecem os sistemas de saúde. Porque tão importante quanto a cura é “o olhar de quem olha”.

 

Foi fantástico….

“Elas tinham a preocupação de cuidarem não só do meu rosto e da minha perna, mas também de cuidar um bocadinho do meu coração. Saía daquelas quatro paredes e, por causa das enfermeiras, via outras coisas, outras histórias, outros mundos…”

 

Luciana, 40 anos, está a ser acompanhada no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa depois de diagnosticada com um osteossarcoma na mandíbula. No rosto são visíveis os sinais da intervenção cirúrgica que foi reconstruído com osso e tecidos retirados da perna. Em ambos os locais ficaram as sequelas das feridas.

 

Contou Luciana que a ferida da perna foi a que lhe causou maiores preocupações. Não havia meio de cicatrizar e a aplicação do betadine para a manter limpa revelava-se ineficaz. Até que, um dia, alguém a informou que ali, no IPO, trabalham enfermeiras peritas no tratamento de feridas. Foi quando conheceu a Dora e a Helena e, desde então, como que um novo despertar aconteceu numa manhã inteira e limpa.

 

“A quimioterapia deitava-me a baixo. Mas, o meu medo era que a perna não curasse e ficasse com alguma sequela grave. Eu não conseguia caminhar quando comecei a fisioterapia”, contou-nos.

 

Mas, surpreendentemente, o tratamento aplicado na ferida na perna mostrou-se eficaz. “Foi fantástico. As enfermeiras peritas ficaram parvas porque diziam que o objectivo seria que a ferida apenas não regredisse. O fantástico foi que as melhoras surgiram. Elas consideraram surpreendente que se fosse curando estando eu ainda sujeita a uma quimioterapia tão agressiva. Só fechou totalmente quando terminei a quimioterapia, mas não seria de todo possível sem a ajuda delas. Foram elas que me curaram a perna, juntamente com a minha força de vontade, mas foram elas que me cuidaram”.

 

A ferida no rosto era também um dilema para Luciana. Eventualmente mais perturbador porque mais visível e susceptível de afectar as relações sociais. Mas, também neste pormenor, o testemunho de Luciana é impressionante.

 

“Eu tenho uma cicatriz do meio do lábio até ao olho. Foram as enfermeiras do 5.º piso do IPO de Lisboa que me cuidaram, que me retiraram os pontos. Havia uma enfermeira que eu adorava. Tinha mesmo jeito. Retirou-me os pontos na cara e, segundo me disseram, nesta parte do corpo o trabalho técnico tem de ser muito aprimorado para evitar as marcas. Elas retiraram-me os pontos e eu estou com umas cicatrizes fantásticas. Foram elas, com muito cuidado, que retiraram, que colocaram creme todos os dias, que tiveram esse cuidado comigo.”

 

Luciana falou-nos sobre as duas faces da moeda que se chama doença. Numa das faces, está cunhada a própria doença que ninguém escolhe ou exige a posse. Apenas surge. Acontece. Raramente alguém a deseja.

 

Na outra face está cunhado todo o processo que envolve o cuidar e o curar. A cura nem sempre é possível. Há doenças incuráveis.  Nestes casos, a dado momento, os médicos dão por terminada a sua missão e indicam os cuidados paliativos para que a pessoa prossiga o seu caminho com a qualidade de vida possível. Mas, sem que nunca alguém fique sozinho.

 

Todo caminho percorrido pela pessoa doente é acompanhado pelos Enfermeiros, sempre presentes, nunca ausentes, do início ao fim, seja qual for o serviço em que estejam inseridos, seja qual for o estado da enfermidade, fazendo perceber que o físico doente é apenas uma parte, se calhar só uma ínfima parte, e que tudo o resto pode permanecer saudável, vivo, revigorante, disponível para a vida. Tudo isto se densa na palavra “cuidar”.

 

“Na minha experiência tive muito mais contactos com enfermeiros do que com médicos”, contou. “O médico chegava lá, dizia alguma coisa, mas quem fazia tudo eram sempre os enfermeiros. Posso dizer que foram mesmo fulcrais porque o médico operou-me quando eu estava ‘offline’, mas os cuidados pós-operatórios foram dos enfermeiros.”

 

Luciana, felizmente, tem perspectivas de vida futura com saúde e autonomia. Espera neste momento a reconstrução da dentição para, depois, partir em busca de um novo emprego. Reconhece que o seu optimismo se enraíza na sua própria personalidade. Optimismo que é um bálsamo precioso de apoio e consolação para quem sofre na doença. Os enfermeiros sabem isso e perceberam que a doente poderia ser uma transmissora do seu próprio bálsamo.

 

Disse Luciana: “Eu estava sempre deitada. Todo o tempo. Mas, as enfermeiras pegavam em mim, colocavam-me numa cadeira de rodas e eu andava com elas de quarto em quarto a entregar a medicação. Elas sabiam como eu sou bem disposta e diziam: ‘assim, além de nos ajudar, inspira os outros doentes’. Tiravam-me do quarto, eu andava com elas. Eu senti que se preocupavam comigo, que cuidavam das minhas feridas e também do meu coração”.

 

Enfermeiro de Família

Elsa Peres, 39 anos, é mãe de dois filhos pequenos. É directora de Recursos Humanos nos serviços centrais de uma empresa nacional com muitas centenas de funcionários. Poderia, eventualmente, manter toda a família afastada do Serviço Nacional de Saúde. Mas, não! As consultas com as equipas de enfermagem do Centro de Saúde da sua área de residência mantêm-se imprescindíveis.

 

Conta Elsa: “Sempre que vou à consulta de enfermagem, além de se tornar muito mais agradável pela proximidade que criam e pelo ambiente familiar gerado, acabo por ficar satisfeita ao ver os meus filhos estarem à vontade,  pelo feedback que a enfermeira vai dando, inclusive sobre algumas questões detectadas pela rotina da sua vida profissional que eu, como outros que não são da área da saúde, nem me apercebo. Se surge alguma dificuldade, acaba sempre por me ajudar”.

 

Proximidade também significa disponibilidade. “Inclusive, tenho a possibilidade de enviar um e-mail ou contactar telefonicamente a enfermeira que logo se disponibiliza para me esclarecer todas as dúvidas”, acrescentou.

 

Proximidade implica uma relação. “A enfermeira é uma pessoa que sabe o nome dos meus filhos, que questiona sobre situações que às vezes coloco nas consultas. Depois de me deslocar ao Centro de Saúde tem a amabilidade de me contactar para saber se a situação que eu tinha apresentado já estava resolvida. Realmente é muito bom ter essa proximidade e essa relação”, congratula-se Elsa.

 

A figura do Enfermeiro de Família faz muito sentido, na óptica daquela gestora. A falta de acompanhamento por uma pessoa ou por uma equipa acaba por fazer desaparecer o histórico do utente e, porventura, de toda a família. É certo que os registos informáticos mantêm-se, mas quando Elsa vai à consulta e percebe que a enfermeira Cristina trata os filhos pelo nome, tudo muda… 

 

“Imagine: o meu filho tem fobia de alturas (acrofobia). A enfermeira conhece-o e quando lá vou para uma vacina ela sabe que o incomoda estar em cima de uma maca e tem um cuidado diferente”, revelou, acrescentando: “Estas questões fazem todo o sentido e dão logo um conforto completamente diferente quando nos dirigimos a um serviço de saúde e sabemos que vamos encontrar uma pessoa que já tem o conhecimento histórico sobre nós e sobre os nossos filhos”.

 

Elsa é especialista na gestão de recursos humanos, lida com pessoas, a sua experiência profissional permite-lhe ler com mais alcance os termos “proximidade” e “relação”, e, por isso, questionamos se concorda com uma maior centralidade dos cuidados de saúde primários no Sistema Nacional de Saúde.

Resposta:

“Completamente, porque os hospitais são tão pouco próximos, tão despersonalizados que as pessoas quando lá vão ficam geralmente com a sensação de uma experiência negativa. No Centro de Saúde, não. Como há a possibilidade de ser próximo da residência, as pessoas acabam por criar relações com as pessoas que os acompanham. Acho que é muito mais positivo do que a experiência hospitalar que, geralmente, é horrível e assustadora”. Para Elsa, "o doente é o alvo e a saúde deve girar à sua volta, centrada na pessoa que necessita de cuidados", sublinhando que a literacia, nesta área, poderia ajudar a resolver muitos problemas crónicos.

 

São uma estrela…

Ester, 70 anos, doente crónica, há oito anos que, de 15 em 15 dias, se desloca ao Hospital S. Francisco Xavier para receber transfusões de sangue. Antes desta rotina nunca se sentira assolada por qualquer doença. Era empregada de balcão, autónoma e independente. De repente, ficou dependente de familiares para a levarem ao Hospital de Dia, sempre à sexta-feira.

 

Quando uma pessoa experimenta fragilidade e sofrimento por causa da doença, também o seu coração se sente acabrunhado, cresce o medo, multiplicam-se as dúvidas, torna-se mais impelente a questão sobre o sentido de tudo o que está a acontecer. “Foi isto mesmo que senti”, confessa Ester que, até aos 62 anos, nunca conhecera os serviços de um hospital.

 

A dor isola duma forma absoluta e é deste isolamento absoluto que nasce o apelo ao outro, a invocação ao outro. O outro, ou os outros, que, segundo Ester, se tornou possível invocar, foram os enfermeiros. “Susana, Catarina, todas. Isto há já oito anos”, diz, frisando: “Coitadas! Por aquilo que eu vejo, elas é que são o pilar daquilo tudo e também o nosso suporte. Elas são estrelas”.

 

Ester nunca teve médico de família e ainda não tem. Contudo, garante que não se sente abandonada, e que durante estes oito anos nunca se sentiu sozinha.

 

E explica: “Eu tenho o número delas. Se eu precisar de alguma coisa, falo com elas e elas dizem-me o que tenho de fazer. Ando sempre com os números. Se houver alguma coisa, telefono para elas. Caso precise, elas estão ali”. E acrescentou: “Elas ajudam-me a sentir saudável”.

 

São uma ponte…

“Muitas vezes temos dificuldade em falar com os médicos e expor as questões de forma clara sobre os problemas de saúde que sentimos ou que sentem os nossos filhos. Os enfermeiros são muitas vezes essa ponte e sabem ser essa ponte”.

 

Palavras de Joana Severino, esteticista, mãe de dois filhos, um de três anos e outro de cinco meses. Foi por causa deste bebé, a quem foi diagnosticada uma bronquiolite, que se viu obrigada a contactar os serviços de pediatria do Hospital de Setúbal. Foram três dias de internamento naquele hospital, de mãe e filho, que lhe alteraram a noção do que representa o exercício profissional do enfermeiro.

 

“Nunca estivemos sozinhos. Havia sempre uma enfermeira, às vezes duas, que me mantinham tranquila”, contou-nos. Em seu entender, “o maior sofrimento de uma mãe perante o filho doente nem é tanto a doença em si, porque, felizmente, a maioria é curável, mas a ausência de um olhar, de uma voz, ou até de um toque, que transmita paz, serenidade e confiança de que tudo irá correr bem”.  Segundo Joana, os doentes têm mais medo do abandono, da falta de informação, do que do mal de que possam padecer. No caso dos serviços de pediatria, acrescentou, é fundamental que as mães se mantenham sãs, sem o risco de ficarem mais doentes do que os filhos devido à falta de acompanhamento e de comunicação.

 

A doença, na perspectiva daquela esteticista, nunca será motivo de regozijo. Mas, disse, pode ajudar-nos a percepcionar a beleza do ser humano, não aquela que se pinta nas unhas, nos olhos ou nos cabelos, mas aquela que brota do interior e que nos leva a compreender que somos realmente bonitos quando nos ajudamos uns aos outros, quando nos olhamos e tentamos ser uma presença nos momentos mais difíceis.

 

Joana ganhou também a percepção de que os enfermeiros podem ser uma ponte, nomeadamente com os médicos e serviços de saúde em geral, não porque os doentes, ou, no seu caso, os pais dos doentes, não saibam transmitir o que vêem, o que sentem ou o que precisam. Mas, sobretudo, porque nem sempre têm o discernimento do que realmente devem descrever ou solicitar por desconhecimento técnico. Neste campo, Joana Severino considera ter sido bafejada com uma experiência muito positiva na pediatria do hospital de Setúbal. Após a alta hospitalar, o contacto com a equipa de enfermeiros manteve-se, podendo reportar a evolução do estado de saúde do bebé, o agendamento das consultas, recebendo todo o apoio que anula as inseguranças que os pais, geralmente, sentem nestas circunstâncias. Isto é, de facto, “o lado estético da saúde”, frisou. "É bom sentir que alguém nos orienta neste complexo sistema de saúde", acrescentou.

 

Obrigado…

A SRSul trouxe aqui quatro cenários diferentes para assinalar o Dia Mundial do Doente. Em todos eles sobressaem as palavras “relação” e “proximidade”, e também as que dão mais cor ao exercício da enfermagem: atenção, disponibilidade, acolhimento, solidariedade, respeito pelos princípios científicos da profissão.

 

Os enfermeiros: uma série silenciosa de homens e mulheres que optam por olhar todos os rostos à sua volta, cuidando das suas feridas, no corpo e no espírito, sentindo-os próximos em virtude da pertença comum à família humana; como quando juraram defender os valores universais da relação profissional: igualdade, liberdade responsável, verdade e justiça, altruísmo e solidariedade, competência e aperfeiçoamento profissional. Porque todo o doente é Pessoa.

 

Neste Dia Mundial do Doente, o presidente do conselho directivo da SRSul, Enfermeiro Sérgio Branco, envia um abraço a todos os enfermeiros que conferem ao doente uma importância muito maior do que à doença, colocando-o no centro do exercício profissional, e agradece ao presidente do conselho de enfermagem regional, Enfermeiro Marco Job Batista, todo o apoio que possibilitou a elaboração deste texto e a evocação desta tão importante efeméride.