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23-03-2021
Cuidar com a comunidade
“A tuberculose, enquanto questão de saúde pública, convida à reflexão sem excepção. Assinalar o Dia Mundial da Tuberculose significa relembrar que este é um problema de todos, devendo o Enfermeiro envolver a comunidade nesta comemoração, numa perspetiva de cidadania. Educar também é cuidar.”
A SRSul assume na integra estas palavras de Mónia Baião, (no lado esquerdo do cartaz) Enfermeira no Centro Diagnóstico Pneumológico (CDP) de Beja, a que se juntam também as palavras de Paula Jesus, Enfermeira do CDP de Setúbal, para quem “as intervenções de enfermagem passam, sem dúvida, pela actuação activa e diária do Enfermeiro junto dos doentes, quer no seu processo de saúde /doença, quer no seu projecto terapêutico”.
A partir da experiência e saber destas Enfermeiras, neste Dia Mundial da Tuberculose, a SRSul pretende oferecer a todos os seus Membros uma pequena reflexão sobre o impacto da doença na vida dos portugueses. Questionamos, também, sobre qual deve ser o papel do Enfermeiro em todo o processo terapêutico, homenageando, ao mesmo tempo, todos os que trabalham nesta área da saúde.
Como bem salienta Paula Jesus, “a tuberculose (TB) continua a ser uma doença presente em todo o mundo, e um dos maiores problemas de saúde pública, apesar do seu tratamento ser eficaz e gratuito (custos reduzidos)”. No entanto – alerta - “continua a apresentar uma elevada taxa de incidência mundial”. Talvez, porque “o prognóstico dependa da rapidez do diagnóstico e do início do tratamento”, disse.
Em Portugal, felizmente, a taxa de notificação da TB continua a diminuir – no último quinquénio atingiu 5,4% ao ano. Em 2018, a taxa de notificação foi de 16.6 casos por 100 mil habitantes, com os distritos de Lisboa e do Porto a liderarem - acima dos 20 casos por 100 mil habitantes. Segundo Paula Jesus, “ao longo do tempo temos assistido a um envelhecimento da população doente, traduzindo uma redução da transmissão da doença na comunidade, sendo que em 2018 a idade mediana dos doentes foi de 49 anos”.
Mónia Baião lembra: “Há pelo menos 400 gerações que a espécie humana é infectada, adoece e morre com tuberculose”. Na verdade, a doença permanece um problema de saúde pública a nível global. Por isso – faz notar - “a Organização Mundial da Saúde (OMS) já traçou estratégias que têm como meta a sua erradicação até 2035”.
O CDP de Beja está integrado na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (ULSBA) e na área de abrangência do Departamento do Agrupamento de Centros de Saúde do Baixo Alentejo (DACESBA), respeitando-se a especificidade da sua intervenção e autonomia funcional. Entre as suas valências, está a equipa multidisciplinar do CDP que dá cumprimento às orientações internacionais e nacionais no que respeita à prevenção e controlo da TB.
Mónia Baião evoca a sua experiência profissional para afirmar: “O Enfermeiro assume um papel preponderante no CDP, ocupando um lugar privilegiado na equipa.”. Conforme explicou, “ dada a proximidade entre o Enfermeiro e a comunidade, é possível contribuir para a operacionalização de estratégias de controlo e erradicação da doença, através de diversas intervenções na esfera da prevenção, diagnóstico e tratamento”.
Referindo acções concretas, sublinha: “Os rastreios de contacto são uma intervenção ímpar na prevenção secundária e controlo da doença, contribuindo para a maximização da saúde do indivíduo e comunidade”. E especifica: “Com a realização dos rastreios, pretende-se detectar casos de tuberculose doença, mas também de tuberculose latente, uma vez que, as pessoas recentemente expostas e infectadas estão em risco de desenvolver a doença”. Neste sentido, afirma: “o Enfermeiro desempenha um papel preponderante na realização do rastreio de contacto, agindo de modo compreensivo e empático, com recurso à escuta activa, intervindo e orientando a pessoa de acordo com as necessidades identificadas”.
Diagnósticos lentos
No CDP de Setúbal, que abrange os concelhos de Setúbal, Palmela e Sesimbra, em 2020 foram admitidos 38 novos casos de TB (ligeira diminuição relativamente a 2019) e 86 casos de TBL (Tuberculose Latente), predominando em ambas as situações o sexo masculino. Foram realizadas 152 consultas de primeira vez e 533 de seguimento.
Paula Jesus lamenta que, em geral, o diagnóstico da doença continue a ser muito lento. E explica: “A maioria dos clínicos, perante a presença de sintomatologia, continuam poucos despertos para o pedido de uma simples baciloscopia e de uma radiografia de tórax que podem contribuir para um mais célere início do tratamento”. Em 2018, segundo informou, foi de 80 dias a demora mediana entre o início de sintomas e o diagnóstico. Este atraso no diagnóstico condiciona um maior tempo de exposição e, assim, de infecção pelos familiares e conviventes de cada novo caso. Nesta perspectiva, destaca: “O Enfermeiro tem um papel crucial quer pelo apoio ao doente, quer à família, quer pelo combate ao estigma associado à pessoa com tuberculose, que pode colocar em causa o sucesso do tratamento, não só pela negação da doença, como pela não adesão ao tratamento”.
As pessoas portadoras de TB, note-se, têm de aderir a um tratamento que se prolonga por bastante tempo. Pode variar entre os seis e os nove meses, atingindo, nalguns casos, os 12 meses.
Esta realidade, segundo Paula Jesus, é geradora de crises emocionais. “A pessoa vive sentimentos de perda, ansiedade, angustia, revolta, medo e frustração que em muitos casos pode conduzir a depressão, perda do emprego e não adesão ao tratamento”, observou.
Os Enfermeiros
Voltando a Beja, Mónia Baião, destacando o papel do Enfermeiros, lembra que a adesão ao regime terapêutico é potenciada pela toma da medicação em regime de Toma Observada Diretamente (TOD) durante todo o tratamento.
Ora, segundo nos confidenciou, a TOD é uma “medida de ouro” delineada pela OMS no combate à disseminação da TB. “A TOD contribui para a redução do abandono do tratamento, conduzindo ao sucesso terapêutico, impedindo a recidiva da doença e concorre ainda para a diminuição da resistência aos antibióticos”, esclareceu. A equipa de enfermagem do CDP de Beja, onde Mónia desempenha funções, encara esta estratégia terapêutica com toda a seriedade.
A Enfermeira explica: “A TOD é uma intervenção de enfermagem que vai muito além da mera administração de medicação, da vigilância de possíveis efeitos adversos e do reforço de ensinos”. Trata-se, frisa, de “um ímpar momento de interação e de partilha que transcende os conteúdos relativos à doença e ao tratamento, abrangendo também aspectos sociais e ambientais, contribuindo igualmente para a anulação de factores estigmatizantes”. Em seu entender, “este acompanhamento diário possibilita a criação de um vínculo entre o Enfermeiro e o doente/família, sendo potencializador da adesão ao regime terapêutico, da inserção da pessoa doente na sociedade e determinante para a sua cura”.
Numa área territorial tão vasta, a TOD é gerida pela equipa de enfermagem do CDP de Beja, em articulação com os Enfermeiros elo das unidades funcionais. “A fluidez deste trabalho conjunto permite o cumprimento da TOD com efectividade, numa área geográfica extensa como é a área de abrangência da ULSBA, composta por concelhos maioritariamente rurais, onde existem montes que distam quilómetros das unidades de saúde”, explicou. Neste contexto, por vezes é preciso percorrer muitos quilómetros. Mas, apesar destas particularidades, assegura, “a administração da TOD é conseguida diariamente através da articulação organizacional existente, que tem por base uma rede de comunicação estreita entre Enfermeiros da ULSBA, que se manifesta numa perícia pró-activa e que faz com que o longe se torne perto”.
O diagnóstico é também uma fonte de preocupação para Mónia Baião. Conforme explicou, “o diagnóstico e tratamento precoces são estratégias fundamentais à prevenção da transmissão da doença na comunidade e à redução do risco de mortalidade”. Lembra, neste sentido, que, apesar de ser uma doença evitável, susceptível de tratamento e curável, é a doença infecto-contagiosa mais mortífera do mundo e uma das dez principais causas de morte a nível mundial. “Esta realidade traduz os determinantes sócio-económicos decorrentes de desigualdades sociais e as sucessivas crises mundiais que têm vindo a assombrar a humanidade”, observou.
Questões sociais
Em geral os Enfermeiros demonstram sempre uma grande sensibilidade perante questões que afectam socialmente as pessoas ao seu cuidado, sobretudo as mais desprotegidas.
Segundo Paula Jesus, em Setúbal, “uma das situações mais preocupante para estes doentes é o facto de poderem perder o emprego ou o de não poderem trabalhar durante o período de tratamento devido às características da doença e/ou às lesões causadas”. Esta situação, conforme salientou, provoca perda de rendimentos indispensáveis para sustentar a família, pagar renda de casa e outras despesas essenciais. Felizmente, disse, “no CDP de Setúbal existe a articulação /parceria com a assistente social do ACESA, podendo assim encaminhar o doente sempre que a situação o justifique”.
O doente com TB quando se dirige pela primeira vez ao CDP não só se encontra extremamente fragilizado como também já interiorizou um grande estigma relativamente à doença. A proximidade, corrobora Paula Jesus, faz toda a diferença.
Disse: “É através de um acompanhamento diário e muito próximo com a equipa, através de ensinos /conselhos/disponibilidade / contacto telefónico, que as pessoas se vão adaptando à sua nova condição de vida”. E observa: “Na maioria das vezes, os doentes quando chegam ao CDP não acreditam na sua cura; só com o passar das semanas começam a admitir que são capazes de ultrapassar esta fase menos boa e começa a ver a equipa do CDP como uma “bengala” e, finalmente, como ‘amigos’, pois estamos sempre presentes no seu dia-a-dia”.
Com os Enfermeiros comprometidos com a comunidade torna-se mais fácil estabelecer parcerias de apoio às pessoas portadoras de TB. Paula Jesus salienta a parceria com o GIRU de Setúbal (entidade não governamental que apoia a população carenciada) para o rastreio, seguimento de consulta, TOD e vacinação.
A equipa articula-se também com o Estabelecimento Prisional de Setúbal no rastreio, consultas de TB e Tuberculose Latente/Infecção, vacinação e administração de terapêutica, além da colaboração com o CAT (Centro de Atendimento a Toxicodependentes) e com outras instituições de solidariedade social.
No entanto, segundo a Enfermeira, mais parcerias seriam necessárias. “Pensamos que seria muito importante a articulação /envolvimento mais activo dos psicólogos do ACESA neste projecto”, referiu.
Por outro lado, defendeu, “o sistema de saúde e o Plano Nacional de Luta Contra a Tuberculose (PNLCT), à imagem do que era realizado anteriormente, deveriam fornecer/disponibilizar bilhetes de autocarro aos doentes com TB para que estes se pudessem deslocar ao CDP /centros saúde de referência para realização de TOD, uma vez que por vezes estes ficam distante das suas residências”.
Ainda segundo Paula Jesus, “seria de grande importância a reimplementação do projecto de Visitação Domiciliária para a TOD (já existiu no CDP Setúbal mas entretanto foi decaindo) com uma carrinha móvel que permitisse aos profissionais de saúde deslocarem-se aos domicílios, quer para realização de TOD Domiciliária, quer para acompanhamento social/psicológico dos doentes e das suas famílias”.
Para Paula Jesus, a TOD (Toma Observada Directamente) é uma das ferramentas mais importantes e cruciais para o sucesso terapêutico. E garante: “No CDP Setúbal todos os doentes com TB são acompanhados diariamente pelo Enfermeiro”. Tal como em Beja, sempre que o doente não pode realizar TOD no CDP, a equipa articula-se com o Centro de Saúde da área de residência do doente.
Mónia Baião e Paula Jesus, no seu dia-a-dia, demonstram uma grande preocupação pelas pessoas ao seu cuidado. Sobretudo as mais vulneráveis. Esta é, aliás, uma característica sempre presente no exercício da Enfermagem. É por isso que a SRSul da Ordem dos Enfermeiros, nos variados trabalhos que tem vindo a publicar, tem reiterado o apelo para que os cuidados de saúde envolvam sempre as comunidades nas diversas áreas de intervenção, seja na esfera da prevenção, do diagnóstico ou do tratamento. “Só assim, refere o Enfermeiro Sérgio Branco, presidente da SRSul, poderemos oferecer à pessoas um verdadeiro Serviço Nacional de Saúde, em vez de um serviço nacional da doença”.
Além de Paula Jesus e de Mónia Baião, este trabalho dedicado ao Dia Mundial da Tuberculose contou também com a colaboração do Conselho de Enfermagem Regional (CER) da SRSul.