Viver com dor sem deixar de tratar a dor dos outros

  • 20-10-2023

Tratar da dor faz parte da essência do ser enfermeiro. E quando o próprio também sofre? A Enfermeira Sandra Carvalho sabe bem como não é fácil conciliar a actividade com a dor crónica. Esta, tantas vezes está "escondida" no silêncio de quem receia o estigma e acaba por sofrer, às vezes até ao limite, para não revelar a realidade que enfrenta.

 

Há 13 anos, Sandra Carvalho, Enfermeira no Hospital Santa Luzia de Elvas , sofreu uma queda enquanto trabalhava. Tudo mudou. Começou a sofrer de "cefaleias intensas", tinha uma mancha no olho, a visão turva e os sintomas demoravam a passar. Exames posteriores revelaram o diagnóstico de esclerose múltipla.

 

Desde então tem sido uma aprendizagem de como viver. De como aproveitar a vida. Mas também de adaptações perante as limitações que a doença acaba por trazer. Nos últimos anos diz que tem vivido com dor, mas nem por isso o seu espírito quebra e não hesita em considerar que é uma privilegiada em certos aspectos.

 

Neste Dia Nacional de Luta Contra a Dor, conhecemos a história desta enfermeira, de 51 anos, que não desiste de fazer o que mais gosta, que recusa focar-se no lado negativo, agarrando-se ao positivo não só por si, mas também para tentar mostrar a outros, profissionais de saúde e comunidade em geral, que esta doença não tem de ser vista como uma "sentença tão imediata".

 

"A esclerose múltipla é uma doença crónica, não há cura. Cada vez há mais medicação, que acaba por atrasar o seu progresso. Quando estava mais em baixo era nisto que me focava: ao pé de tantos que eu cuidei e muitos já não cá estão, eu acabo por ser uma sortuda porque consegui fazer a minha vida, com limitações, é certo – tenho dias maus –, mas não é aquela sentença tão imediata", realça.

 

Reitera que vive com dor, explicando que com a esclerose múltipla acaba por surgir a dor neuropática. Contudo, o seu caso não fica por aí: "Eu tenho seis hérnias discais, que são o que mais me incapacitam. Há quatro anos que não posso dizer que tenha tido um dia sem dor. Venho trabalhar com dor. Estou o dia com dor. A minha vida neste momento é dor!"

 

Problemas hepáticos faz com que tenha cuidado com a medicação. "De manhã, mal consigo mexer-me com tanta dor, vou conseguindo controlar mais durante o dia e evito tomar a medicação devido à questão hepática. Só quando não aguento é que recorro à medicação", explica.

 

Chegou a dedicar-se primeiro às caminhadas, depois aos trails e salienta como tal a ajudava psicologicamente. Porém, as hérnias acabaram por a afastar dessa aposta no exercício físico. Lidar com a dor é, hoje em dia, para a Enfermeira Sandra Carvalho uma questão muito ligada à força mental, focando-se, como diz, em "ajudar os outros que, como eu, lutam diariamente para superarem as limitações desta doença". E não esquece o apoio essencial da família.

 

Actualmente está na gestão de altas e elogia os colegas que sabe que passam por dificuldades maiores: "Sou uma privilegiada em certos aspectos. Estou numa área em que não tenho de fazer grandes esforços físicos. Ponho-me no lugar dos meus colegas que trabalham nestas áreas com uma fibromialgia, artrite reumatoide ou até outras patologias que provoquem dor, eu gabo o esforço deles porque não é fácil."

 

Não ficar em silêncio


Apesar das dificuldades, o seu discurso é sempre num tom de quem não só não se coíbe de falar da sua doença e de como a afecta, mas que também o faz mostrando que há razões para se olhar em frente com optimismo.


E falar é uma palavra chave. A dor crónica parece muitas vezes ficar "escondida". Quem sofre não a quer mostrar. "O tema da dor devia começar por nós. Haver mais congressos, ou encontros, ou fóruns, tentar motivar as pessoas a falar mais abertamente, a procurar ajuda quando é necessário", salienta a enfermeira.


"É desmistificar também. Tudo passa pela informação, pela divulgação e por falarmos abertamente sobre as coisas, sobre as nossas doenças. Não termos problemas em falar", acrescenta, sabendo que, no entanto, é difícil fazê-lo.


"Como coordenadora desta delegação, mobilizar os portadores de esclerose múltipla do distrito é muito complicado. As pessoas ainda têm muito estigma de darem a conhecer o que têm. Preferem esconder, preferem que o outro não saiba, para não serem julgadas. E isto depois acaba por também ser geral, mesmo noutras patologias e às vezes entre nós, profissionais de saúde. É difícil a pessoa ter a capacidade de se expor, ou de pedir ajuda ou de falar", considera.

 

O estigma


O receio de expor a doença que se sofre, da dor que causa, faz com que muitos acabem por levar o esforço que fazem ao limite. A Enfermeira Sandra Carvalho alerta como chegar a um ponto de ruptura pode ser ainda mais grave e fala da realidade dos enfermeiros com patologias que provocam a dor crónica.


"Como podemos cuidar dos outros se não cuidarmos de nós próprio? Temos de nos cuidar, temos de estar bem connosco para poder ajudar o próximo. Eu funciono assim. Fui aprendendo. A vida é uma experiência e só temos de aprender com os nossos erros, com as nossas experiências de vida que nos vai fortalecendo."


"Temos muitos enfermeiros com doenças complicadas, que os põem à prova e estão à frente de projectos incríveis e são porta-vozes de excelência. Nestes 13 anos de portadora, tenho conhecido excelentes profissionais, excelentes pessoas, que dão um exemplo incrível nesta questão da dor", afirma, apelando para que não se sofra em silêncio, independentemente da profissão.


Sandra Carvalho é um exemplo de quem, como coordenadora da delegação distrital de Portalegre da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, organiza iniciativas, algumas para profissionais de saúde, como para a comunidade em geral, exemplificando com visitas às escolas.


Reconhece que o silêncio, o não se admitir a dor que está a sofrer está muitas vezes relacionado com o estigma de que se expressa publicamente, ouve um "está sempre a queixar-se". "Eu sou muito queixinha. Não me interessa que me digam que seja queixinha. Tive uma situação que por não me queixar, por pouco não estava cá. Falar, acaba por ser uma forma de eu aliviar um pouco a minha dor."


Mas o estigma vai além do admitir, do falar: "Há sempre quem não compreenda tão bem. Neste momento eu tenho limitações que sou eu que as sinto. Quem olha para mim não consegue perceber. Aquilo que o outro não vê é mais fácil de julgar e às vezes as pessoas acabam por nos julgar por isso, até noutras patologias."


E exemplifica: "Uma situação que todos os portadores de esclerose múltipla têm e foi o que senti que me incapacitou mais, é a fadiga crónica. Eu acordo mais cansada do que quando me deito. Quando chego [ao serviço], chego sempre exausta. Quem está ao pé, não percebe isso e julga."


Admite que passou por um ou outro momento mais complicado, mas, mais uma vez, sente-se privilegiada por ter tido a seu lado colegas que a ajudaram e que compreenderam a sua situação. Destaca, como ponto positivo, que desde que foi diagnosticada, há mais informação.

 

Adaptar-se às mudanças


A Enfermeira Sandra Carvalho fala abertamente da sua doença e de como a enfrenta. Recorda que tinha sido mãe pouco mais de dois anos antes do diagnóstico e como, precisou de fazer um luto. Soube da doença num mês de Março e em Janeiro do ano seguinte fez um reset, como disse:"Comecei a enfrentar isto com outra perspectiva e outra força. Até agora, apesar de ter sofrido recaídas, consegui dar a voltar e lidar bem."


Naquelas coincidências da vida, antes, em Novembro, havia convidada para a delegação distrital de Portalegre da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla como enfermeira: "Fiquei na delegação como enfermeira e como utente!"


Não esconde que lhe custou deixar os cuidados mais próximos ao utente. Porém, não hesita em dizer: "Gosto do que faço, mas foi difícil ao início quando deixei a prestação de cuidados, deixei o cuidar do utente, que era aquilo que muitas vezes me dava força quando estava mais em baixo."


"Costumava dizer quando entrava no serviço 'eu hoje venho mal', mas começava a lidar com o utente e esquecia-me que não estava bem. Foi uma adaptação. Gosto muito com quem trabalho. Somos uma equipa. Eu e a minha colega, entendemo-nos perfeitamente. Ela também é uma sobrevivente, foi diagnosticada com neoplasia da mama e contra todas as expectativas superou. Acabamos por nos compreender e isso ajudou a ultrapassar o facto de já não estar na prestação de cuidados."


A Enfermeira Sandra Carvalho quer continuar assim, a aproveitar a vida, a manter-se activa, a não se render a uma dor que recusa sofrer em silêncio, na esperança que possa ajudar outros, como sempre quis fazer como enfermeira.