Ser Enfermeira na Neonatologia e mãe de um bebé prematuro

  • 17-11-2023

Durante 10 anos, a Enfermeira Lígia Marques cuidou de muitos bebés prematuros, apoiou as famílias, mas em 2019 os papéis inverteram-se. Francisco nasceu às 32 semanas e três dias. Entre a difícil gravidez, a angústia e a ansiedade de conhecer perfeitamente os riscos de um prematuro, Lígia Marques viveu tempos complicados. Hoje, analisa essa experiência com outros olhos, confessando como agora é diferente trabalhar na Neonatologia.

 

Um em cada dez bebés nasce prematuro no mundo, segundo a EFCNI – European Foundation for the Care of Newborn –, plataforma constituída por pais e profissionais de saúde e que desde 2008 tem como objectivo dar voz aos recém-nascidos prematuros e às suas famílias.

 

Neste Dia Mundial da Prematuridade, a Enfermeira Lígia Marques partilha a sua história. Uma que, de quando em vez, o faz no exercício da sua profissão e que desde 2019 teve uma profunda influência na forma de lidar principalmente com as famílias dos bebés prematuros. De um momento para o outro, a enfermeira da unidade de Neonatologia do Hospital São Francisco Xavier ficou a saber exactamente o que os familiares enfrentam, o que sentem, as angústias que os consomem.

 

A desvantagem do conhecimento


Lígia Marques, de 36 anos, recorda vividamente todos os momentos da gravidez e parto de Francisco e tudo o que se seguiu até poder levar o filho para casa. Algo é de imediato destacado: a experiência como enfermeira na Neonatologia nem sempre foi uma ajuda para lidar com a situação que enfrentou.


Às 30 semanas e quatro dias, Lígia Marques sofreu uma hemorragia, isto depois de um descolamento da placenta pouco tempo depois de saber que estava grávida e de sentir contracções às 20 semanas. O marido transportou-a de imediato para o hospital. Escolheu o "seu" São Francisco Xavier, em Lisboa.


"Confiava a 100%, ainda por cima era a unidade na qual trabalhava há dez anos. Era uma equipa que eu conhecia e isso dava-me uma certa segurança. Ao mesmo tempo era uma ansiedade por saber de mais. Tantas vezes que eu pensei que queria ser ignorante por um bocadinho, não queria ter noção daquilo tudo. Já depois de ele nascer, o saber tudo o que poderia acontecer naquele internamento… Estava entre o ter a confiança total na equipa e o saber em demasia… Foi algo que me angustiou muito", confessa.

 

Diz que, em certas alturas, o pensamento centrava-se em questões como "e se ocorre uma sépsis e se infecta... e se ele piora". E reitera: "Houve muita ansiedade!"


Depois de ser internada, a enfermeira sofreu mais hemorragias, mas acabava por regressar ao seu quarto. Às 32 semanas e três dias, tal não aconteceu. Francisco tinha de nascer e foi feita uma cesariana: "Ele foi para a minha unidade. Dentro do quadro esperado para as 32 semanas nasceu bem."


Mãe pela segunda vez – a filha tinha então três anos –, a enfermeira necessitou de transfusões de sangue e ainda demorou até poder ver o seu bebé.
"Foi tudo um pouco traumático. Além da questão prematuridade, foi a primeira vez que passei por uma situação tão intensa a nível de saúde. Acabei por estabilizar e só três dias depois me levaram à neonatologia", recorda, realçando também o facto de não poder estar com a filha como gostaria.

 

Gerir a ansiedade e tirar partido da experiência


Foram cerca de três semanas de internamento e ao ver o filho atingir “as etapas da evolução para a sua autonomia, a nível respiratório e alimentar”, que a Lígia Marques tão bem conhece, a experiência como enfermeira da unidade de Neonatologia começou a ser uma ajuda.


"Aos poucos consegui gerir melhor a ansiedade face ao meu conhecimento da situação. Percebi que ele estava a evoluir bem", frisou. Mas…


"Houve um pequeno pormenor: ele ficou em isolamento por uma situação de colonização, uma bactéria. Teve de ir para uma sala específica. Mais um momento que criou uma ansiedade extrema. Toda a gente dizia que ele estava bem, que estava apenas colonizado. Eu só pensava: 'Porquê a mim!'"


"Mas foi só um pormenor, porque de resto teve uma evolução muito linear, com tudo a que teve direito para aquela idade. Muitas coisas era eu que fazia. Não substituí as minhas colegas enfermeiras, mas havia pormenores que eu conseguia fazer e ajudei o meu marido a nível dos cuidados [a ter com um bebé prematuro]."

 

Uma enfermeira diferente no regresso


Inevitavelmente, a experiência influenciou-a quando regressou ao trabalho, principalmente na forma de lidar com as famílias.


"Após o nascimento da minha primeira filha notei que algo mudou em mim. Tinha passado pelo processo de maternidade e acho que consegui ficar mais próxima dos pais. O nascimento do Francisco foi mais intenso. Consegui, essencialmente, perceber o lado daqueles pais, o sofrimento, a ansiedade que sentem. Uma ansiedade diferente. Eu tinha por saber de mais e muitas vezes temos ali pais que estão num estado de ansiedade devido ao desconhecido", salienta.


"Na Neonatologia lidamos muito com a família. Cuidamos do bebé, é o nosso foco, mas a família está sempre presente. São parceiros nos cuidados. Numa fase inicial acho que somos muito importantes para a estabilidade da família", acrescentou.


Por isso, de quando em vez partilha a sua história, mas só quando sente que pode fazer a diferença com uma mãe ou um pai. Hoje em dia ainda lida com alguma ansiedade por saber que há complicações que podem surgir mais tarde. Porém, desabafa feliz: "Os anos passam e eu vou percebendo que tenho um filhote saudável."


E não esconde que ao cuidar de bebés de 31/32 semanas pensa sempre no seu Francisco e é quase impossível não fazer alguma comparação.

 

O que não mudou…


A dedicação e o gosto pela enfermagem na unidade de Neonatologia do Hospital de São Francisco Xavier continuam intactos agora que soma 14 anos de experiência. E o que também não mudou foi a necessidade de acompanhar os pais e mantê-los informados de tudo o que rodeia ter um bebé prematuro.


"Tentamos acompanhá-los nesse processo e dar-lhes pequenas ferramentas para saber o que esperar nos próximos tempos", disse, referindo que esta forma de agir é comum a outras unidades.


No caso da Neonatologia, exemplificou: "O Francisco nasceu às 32 semanas. Apesar de ser uma idade que muita coisa pode acontecer é um pouco mais estável. Mas temos bebés a partir das 24 semanas e há que gerir a informação, o que dizemos. É uma idade que todos os dias contam."


Com a internet a ser uma fonte de informação nem sempre a mais fiável, a Enfermeira Lígia Marques deixa um apelo: "Damos sempre muita abertura para que coloquem questões. Falem connosco, nós tentamos explicar da melhor forma, se não conseguirmos, tentamos procurar para vos dar a resposta."


"A internet é muito enganosa e pode dar uma realidade ou respostas que não são as mais correctas. Até porque cada bebé é um bebé e nós talvez saibamos ajudar com as questões para o vosso bebé."