Portugal com prioridades trocadas

  • 11-12-2020

No Dia Internacional da Cobertura Universal da Saúde, assinalado este sábado, 12 de Dezembro, a Bastonária da Ordem dos Enfermeiros avisa que entre dotar a Saúde com mais 500 milhões de euros no novo Orçamento de Estado e deslocar 3,2 mil milhões para a TAP há um claro sinal de desvalorização da Vida”.

 

“Andamos com as prioridades trocadas”, lamentou Ana Rita Cavaco numa conversa promovida pela SRSul para se reflectir sobre este dia internacional que tem em vista o acesso de todos à saúde, princípio consagrado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que devem ser alcançados até 2030.

 

A Bastonária considera ser de louvar a meta apontada pela OMS, a qual “merece a adesão e o aplauso de todos os países”, disse. Lembra, no entanto, que a 30ª Assembleia Mundial de Saúde, realizada pela OMS em 1977, também lançara o movimento “Saúde Para Todos no Ano 2000”.

 

De 2000 passamos para 2030 e, salienta Ana Rita Cavaco, perante uma crise sanitária como a que atravessamos em 2020, concluiu-se que nenhum sistema de saúde no mundo estava preparado para responder a crises graves. As lacunas vieram ao de cima e lamenta-se que tivessem falhado os investimentos previstos em 1977 com vista à meta de 2000.

 

Entretanto, talvez tenhamos aprendido alguma coisa com a actual pandemia. Mas é um “talvez” muito sorumbático tendo em conta, diz a Bastonária, o sinal político dado no Orçamento do Estado para 2021.

 

“Um péssimo sinal”, sublinha, pensando na indiferença a pedidos considerados relevantes, como a possibilidade de os Enfermeiros se reformarem mais cedo, tendo em conta o desgaste da profissão - bem demonstrado, aliás, durante esta pandemia -, e também a possibilidade de a enfermagem ser considerada uma actividade de risco, também agora bem evidenciado. Minutos antes desta conversa, Ana Rita Cavaco tinha ouvido o director executivo do Conselho Internacional de Enfermagem (ICN), Howard Catton, informar que desde Março até agora, em 44 países, já tinham morrido mais de 1500 Enfermeiros infectados com a Covid-19. Mas, o número total de vítimas mortais será maior, pois apenas estão contabilizados 44 países, desconhecendo-se o que se passa nos restantes. Uma coisa é certa: segundo Howard Catton, 30% das infecções com Covid-19 atingem os profissionais de saúde, notando também que o total de Enfermeiros mortos durante a I Guerra Mundial foi inferior a 1500.

 

Ana Rita Cavaco lamenta que, ao contrário do que está a acontecer em alguns países, que já começaram a abrir os cordões à bolsa para reforçar a resiliência dos seus sistemas de saúde, o ruído com a TAP em Portugal esteja a  abafar o trágico adiamento de nove milhões de consultas e de 22 milhões de exames de diagnóstico devido à falta de recursos, sobretudo humanos, que foram deslocados para o combate à pandemia. “Em Portugal, as prioridades estão trocadas”, diz a Bastonária, questionado o facto de a TAP ser considerada uma empresa “estratégica” e de “bandeira”.

 

Entendendo ser pouco claro o significado técnico-administrativo de uma “empresa bandeira”, e perguntando qual dos países perdeu algo da sua estratégia, se a França ou se a Holanda, quando a Air France se fundiu com a KLM, Ana Rita Cavaco defende que o investimento na saúde é a melhor estratégia para salvaguardar a dignidade de todos os portugueses. “A prioridade em Portugal tem de ser o investimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS) porque é para todos”, disse, frisando: “Um SNS acessível a todos – independentemente das condições económicas de cada um, da raça, da cor, da religião, porque o privado não é claramente para todos”.

 

A nossa questão de início era precisamente a razão de ser deste Dia Internacional que pugna por uma cobertura universal de acesso à saúde. A Bastonária da OE, reconhecendo haver desigualdades de acesso em Portugal, é de opinião que o caminho a percorrer envolve, sobretudo, o desiderato de maior justiça social. Lembra, neste sentido, que os mais velhos e os mais pobres são quem apresentam maiores dificuldades em aceder aos serviços de saúde. Também os menos informados, embora nem sendo pobres nem velhos. Tal como os que vivem afastados das áreas mais urbanas. “Somos um país em vias de desenvolvimento, mas com índices de desigualdade desestruturantes”, advertiu.

 

Por outro lado, acrescentou, a desejada cobertura universal fica dificultada pelo número de Enfermeiros no país, sabendo-se que eles são os pilares dos sistemas. Isto tem impacto na mortalidade porque, recordou, por cada doente a mais que o Enfermeiro tenha a seu cuidado no hospital a taxa de mortalidade pode subir até 7%. A média em Portugal é de 6,9 Enfermeiros por 1000 habitantes, ao passo que na União Europeia é de 8,2/1000.

 

O problema, frisou, é que “aquilo que é destinado ao orçamento da saúde é sempre muito pouco”, lembrando: “os hospitais e os centros de saúde estão velhos; não há infraestruturas novas, a não ser as que derivam de iniciativas privadas, ainda que algumas, depois, se constituam parceiras do serviço público”.

 

É necessário, pois, investir, e, desde logo, na retenção dos Enfermeiros que optam por emigrar. Mais de 20 mil andam lá por fora. Ana Rita Cavaco esclarece que saem do país não só os recém-licenciados, mas também outros que optam pela sua valorização profissional oferecida no estrangeiro com melhores condições laborais e melhores salários.

 

Estas saídas são consequência da evolução da Enfermagem em Portugal. Em 1989, a formação passou a estar integrada no ensino superior. A partir do ano 2000, as Escolas começaram a atribuir o grau de licenciatura… e hoje a formação é reconhecida a nível mundial. Para Ana Rita Cavaco, este percurso histórico, que orgulha os portugueses, atesta que a Enfermagem é a profissão que mais tem evoluido nos últimos anos a nível técnico, científico e académico. Mas, “falta ainda o reconhecimento social que os Enfermeiros merecem e a que têm direito”, diz a Bastonária, apelando: “As prioridades não podem estar trocadas”. Para Ana Rita Cavaco, o grande desiderato da OMS para 2030 só será possível se acompanhado de apoio e de protecção aos profissionais de saúde.