Portugal com sinais de evolução na Saúde Mental

  • 10-10-2023

A saúde mental vai deixando de ser tabu. O estigma ainda não desapareceu, mas vão sendo dados passos moralizadores para o acompanhamento/tratamento da saúde mental, inclusivamente em Portugal, onde a lei foi recentemente alterada e o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) prevê uma verba nunca antes atribuída para esta área.


"Our Minds, Our Rights" (as nossas mentes, os nossos direitos, numa tradução livre), é o lema escolhido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para o Dia Mundial da Saúde Mental, que se assinala neste 10 de Outubro. A OMS procura reiterar que a saúde mental é um direito universal e é precisamente este ponto o destacado por Aida Pardal, quando se refere à mudança da lei de bases que aconteceu há poucos meses no nosso país.

 

"Era uma lei que tinha 22 anos. Já não estava adequada aos vários compromissos que Portugal tinha assinado com a Europa, nomeadamente em matéria dos direitos humanos", salienta a Enfermeira Especialista em Saúde Mental e Psiquiátrica na Unidade de Saúde Local do Baixo Alentejo, na Unidade de Internamento Psiquiátrico.


Considera que era uma alteração à lei necessária, destacando dois pontos: "A mudança do internamento compulsivo para involuntário não foi só uma questão de léxico porque era necessário adequar à actualidade. Já não existe o internamento compulsivo, chama-se internamento involuntário."

 

"Os doentes inimputáveis eram os únicos presos que tinham uma sentença de prisão perpétua. Era os únicos no quadro legal. Foi também importante esta alteração."


Sobre este ponto, refere como parte do investimento do PRR irá focar-se nessa área, ou seja, irá "operacionalizar esta desinstitucionalização destes doentes", algo que considera “muito positivo”.


Sinais de mudança


Sobre o estado da Saúde Mental em Portugal no que a acompanhamento e tratamentos diz respeito, a Enfermeira Aida Pardal assinala os sinais de mudança e de evolução que se assiste.


"Actualmente temos alguns sinais de evolução, nomeadamente ao nível dos apoios que temos recebido do PRR. Até ao momento, muito pouco tinha sido atribuído para investimento na área da saúde mental. Este PRR atribuí 88 milhões de euros à saúde mental. Nunca tínhamos tido um financiamento tão elevado e é muito importante", realça.


Acrescenta que, no entanto, o investimento será feito maioritariamente em infraestruturas: "É um indicador que algo está a mudar e que está a haver um investimento diferente na saúde mental”.


E a questão dos recursos humanos também é prioritária. Aida Pardal recorda o relatório de 2022 do ICN (International Council of Nurses) – Global Mental Health Nursing Workforce: Time to prioritize and invest in Mental Health and Wellbeing – que estima que existam aproximadamente 300 mil enfermeiros na saúde mental, sendo os profissionais mais representados a nível mundial nesta área. Segundo dados da Ordem dos Enfermeiros, no universo de enfermeiros especialistas, Portugal tem 11% destes profissionais na área da saúde mental.


"Nós, registados, temos entre 2700 e 2800 enfermeiros de saúde mental em Portugal, dispersos no país, mais concentrados nos grandes centros. O distrito de Beja é o que tem o número menor, com 0,4 da percentagem total. Sabemos que a nossa área é muito dispersa, com várias necessidades na saúde mental e os recursos são poucos", afirma.


Aida Pardal reforça como a "matéria-prima" da saúde mental são os profissionais e que o relatório destaca como os enfermeiros são a task force: "São eles o maior grupo profissional nesta área e são importantíssimos para que se possa intervir e também melhorar e contribuir para uma melhor saúde mental e até para o controlo da doença mental grave."


Neste aspecto, há que referir como a recuperação de projectos que deram os primeiros passos antes da vinda da troika estão a ter o seu impacto: "Estou a falar daquilo que foi novamente fomentado, incutido, que são as equipas de saúde mental comunitárias que fazem um acompanhamento mais próximo e que acabam por minimizar as dificuldades de acesso dos utentes aos serviços. São constituídas por dois enfermeiros, um especialista e um não especialista, mas podem ter eventualmente ter três enfermeiros dada a dispersão geográfica."


Influência dos factores sociais e pessoais


"É importante que se tenha a noção que uma boa saúde mental não depende só dos recursos de saúde que temos para facultar aos utentes e à nossa população", alerta Aida Pardal.


Para a Enfermeira Especialista "uma boa saúde mental depende também das condições económicas, da questão escolar – se temos mais ou menos indivíduos com formação e com acesso a ela –, da questão laboral, se estão empregados ou não. Ninguém tem uma boa saúde mental se estiver desempregado e sem forma de se manter".


Mas há mais: "Depois há algumas questões do próprio, como a qualidade da alimentação, do exercício físico, aquilo que o próprio faz por si… Temos de ter uma visão mais abrangente. Uma boa saúde mental depende de vários factores."


Mais literacia


O recente relatório do programa "Mais Contigo" revela que houve um aumento de jovens com sintomas depressivos em Portugal. Aida Pardal não olha apenas para os números.


"Não sei se piorou ou se hoje há uma maior consciencialização e maior abertura. Fruto do que têm sido as campanhas de sensibilização, a desmistificação da problemática da saúde mental e da doença mental. Penso que hoje, na área da prevenção, estamos muito melhor. Mas se na área da prevenção já se consegue ter outros apoios, na parte da doença mental ainda há um grande estigma", explica.


A Enfermeira Especialista diz que o aumento da literacia em saúde pode ter contribuído para que haja mais procura e que as pessoas estão mais sensibilizadas para a questão da saúde mental.


Necessidade de alterar o padrão documental dos enfermeiros


Aida Pardal salienta a necessidade de se olhar para o padrão documental dos enfermeiros e de o actualizar.

 

"Quando foi realizado o levantamento, há mais de 20 anos, do tempo necessário para a execução das intervenções de enfermagem, não foi feito para a saúde mental e psiquiatria. Isto diz-nos que nós, neste momento, apenas temos um parecer da Ordem dos Enfermeiros – quando fazemos um cálculo das dotações seguras – que foi encontrado com base na análise de vários documentos internacionais e chegou-se a um número. É o primeiro parecer da Ordem dos Enfermeiros de 2019 do Colégio de Especialidade", diz.


"Este é número que vai entrar como Horas de Cuidados Necessários (HCN) no cálculo das dotações seguras. Nós não temos este cálculo efectuado para a nossa área de especialidade. Nem nós, nem a neonatologia."


"Apesar de existir um padrão documental de enfermagem de saúde mental e psiquiátrica, aprovado em 2019, o facto é que a versão CIPE [Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem] que existe no SClínico, é uma versão muito anterior à deste padrão documental. As versões CIPE foram avançando, mas no SClínico não foram actualizadas", acrescenta.


E conclui: "Existe a necessidade de actualizar este padrão documental, ser mais objectivo e mais adequado àquilo que os enfermeiros têm na sua prática, possibilitando retirar mais informação dos indicadores que irão traduzir o contributo singular do exercício profissional dos enfermeiros para os ganhos em saúde."