O longo caminho da reabilitação e integração na sociedade

  • 03-12-2023

Num instante tudo mudou. Um acidente de parapente deixou Pedro Fonseca tetraplégico. Já lá vão oito anos, mas o processo de aceitação e adaptação à realidade prossegue. Tem altos e baixos, como diz, mas se há algo que considera ser imprescindível para continuar a recuperar valências e a estar motivado para o fazer é ter ao seu lado uma equipa dedicada multidisciplinar, que inclui o Enfermeiro Especialista em Enfermagem de Reabilitação Saúl Ramalho.

 

A 3 de Dezembro assinala-se o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. A integração na sociedade é uma das bandeiras. Pedro Fonseca fala disso mesmo, mas não se restringe a um tema mais visível como as barreiras urbanas. Vai mais longe, pois reintegrar-se na sociedade após o acidente começa por ele e na própria vontade e motivação em assumir-se como pessoa activa apesar da grave lesão que sofreu.

 

Não hesita em realçar a importância e influência do trabalho do Enfermeiro Saúl Ramalho e de toda a equipa do Centro de Medicina e Reabilitação de Alcoitão, que vai muito além do tratar: "Não é só isso que eles fazem. Eles acompanham. Nós [pessoas com mobilidade reduzida] de uma forma geral temos altos e baixos. Eles compreendem isso e ajudam. Não é só arranjar, vestir, deitar, beber água, é muito mais que isso. Quando as pessoas são profissionais e exigentes, motiva muito mais. Ajuda muito mais no dia-a-dia."


Saúl Ramalho, 44 anos, não consegue esconder alguma emoção ao ouvir estas palavras: "É uma grande motivação para nós vê-los tornarem-se mais capacitados e mais independentes em certas áreas da vida. A parte anímica faz parte da enfermagem, é um trabalho muito humano. É um grande orgulho quando vemos que no início não tinham determinada capacidade e conseguiram, com treino, adquiri-la. Isto são ganhos, é um trabalho até ao fim da vida."


E salienta: "Aqui [no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão] é um período. A vida é lá fora. Nós tentamos, neste curto espaço de tempo, fazer o máximo para os capacitar para que lá fora consigam ser mais autónomos e ter a melhor vida possível."

 

Os desafios da reabilitação


Ao terminar o curso de licenciatura em Enfermagem, Saúl Ramalho foi trabalhar para o Serviço de Urgência nas Caldas da Rainha. Mais tarde surgiu a oportunidade de integrar a equipa do Centro de Alcoitão, uma referência na área da reabilitação, pela qual o enfermeiro se interessava. Inicialmente era a enfermagem no desporto que o aliciava, mas a experiência em Alcoitão, que tanto começou a gostar desde logo, levou-o a tirar a especialidade em reabilitação.


"Queria ir para uma área em que pudesse fazer a diferença nos utentes. Nas urgências recebíamos utentes com AVC, com múltiplas patologias, mas tudo na fase aguda. Víamos que eles saíam com muitas incapacidades e ao vir trabalhar para Alcoitão achei que fazia mesmo falta [ter a especialidade], que só o curso de enfermagem não chegava. Precisava de aprofundar mais os conhecimentos, para melhorar a minha prática para melhorar os benefícios dos utentes que tinha à minha frente. É a maneira de colocar os nossos conhecimentos em prática em prol dos utentes que temos à nossa frente", explica.


É com notória satisfação que fala da evolução de Pedro Fonseca, recordando que quando Alcoitão recebe um "utente com grau de incapacidade, tetraplégico, que tem de ser substituído em quase todas as actividades de vida diária", há um longo trabalho pela frente da equipa multidisciplinar, que Saúl Ramalho destaca incluir, além dos Enfermeiros de Cuidados Gerais e os Especialistas em Reabilitação, Médicos Fisiatras, Auxiliares de Acção Médica, Fisioterapeutas, Terapeutas Ocupacionais, Terapeutas da Fala, Nutricionistas, Assistentes Sociais, Secretárias, Voluntários, entre outros.


Olha para Pedro Fonseca e realça as conquistas que alcançaram. Já come de forma autónoma, lava os dentes e algumas partes do corpo e já consegue, com a ajuda, assumir a posição de pé, transferir da cadeira para a cama e da cama para a cadeira, por exemplo.
Saúl Ramalho reitera: "É tentar procurar todos os ganhos que pudermos obter e capacitá-los em todas as áreas que é possível eles conseguirem fazer de forma autónoma. Algumas vezes com algumas adaptações, algumas vezes com produtos de apoio."

 

O caminho de Pedro Fonseca


Foi a 20 de Dezembro de 2015 que a vida de Pedro Fonseca mudou. Inicialmente esteve dois meses na Unidade Vertebro Medular do Hospital de São José, onde diz ter sido muito bem tratado. Seguiu-se Alcoitão.


"Uma pessoa vem com uma expectativa muito alta e depois… Às vezes é um bocadinho complicado", admite. Só tem elogios para quem está ao seu lado a ajudá-lo e por todo o trabalho desenvolvido neste Centro de Medicina de Reabilitação. Diz mesmo que não encontrou nada igual sempre que terminou os internamentos.


"Entre lá fora e Alcoitão há um mundo completamente diferente, há um hiato muito grande. As clínicas por onde passei não estavam preparadas para este tipo de lesão. Estão preparadas para outras lesões. Depois é um fisioterapeuta para dez pessoas, a saltar de marquesa em marquesa…", afirma.
Saúl Ramalho exemplifica como a falta de enfermeiros é uma questão importante também nesta área: "Se nós tivéssemos mais enfermeiros a trabalhar nos turnos, de certeza que conseguiríamos proporcionar melhores cuidados aos utentes. Poderíamos trabalhar mais a nossa área de reabilitação, que muitas vezes acaba por ir para os cuidados gerais e depois não temos muito tempo para mostrar o quanto se beneficiaria com os nossos conhecimentos." O enfermeiro é ainda da opinião que deveriam existir mais locais como o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.


O caminho de Pedro Fonseca também passou pela Suíça, para a colocação de um "chip por baixo da lesão medular e com um impulso electrónico ajudava a andar". Foi no segundo internamento em Alcoitão que ganhou muitas das valências que hoje lhe dão alguma autonomia.


Parte desse caminho inclui a reintegração na sociedade: "Varia muito de pessoa para pessoa. Há quem não aceite a sua condição, há pessoas com o tempo vão aceitando, há outras que aceitam mais facilmente. A integração tem a ver com o trabalho, continuar com uma vida activa dentro do possível e ter as melhores condições no dia-a-dia."


Diz que institucionalmente sente-se parte da sociedade, mas pessoalmente não. "Isso tem a ver um bocadinho comigo. Como não aceitei bem a minha lesão tenho mais dificuldade em fazer parte da sociedade, em integrar-me. Varia muito de pessoa para pessoa", frisa.


O enfermeiro também pode ter o seu papel nesta fase, como explica Saúl Ramalho: "Cada caso é um caso. Cada pessoa tem de passar as suas fases interiores para aceitarem. Nós temos um grande papel nessa área em demonstrar a possibilidade de ser uma pessoa activa na sociedade. Eu uso este exemplo: eu tenho pessoas de mobilidade reduzida que têm uma vida social superior à minha, mas isto depende da pessoa, depende da aceitação da doença. Depende também do que encontram lá fora."

 

A importância da aceitação


Ambos realçam como o apoio de família e amigos é essencial. Pedro Fonseca vive com a mãe, de 91 anos. Tem quatro irmãos que lhe dão apoio.
Desde o início da reabilitação que em Alcoitão se tenta incluir a família no processo, como refere Saúl Ramalho. São fomentadas visitas a casa ao fim-de-semana para os utentes "descobrirem as dificuldades que têm, para perceberem as dúvidas que têm, para depois nós também conseguirmos capacitá-los de estratégias, de alterações, mesmo obras que sejam necessárias fazer para que o processo de reabilitação e integração no meio familiar seja o mais fácil e prático possível".


Porém, nem sempre é uma ideia bem acolhida pelos utentes, como confessa Pedro Fonseca…


"O que tenho reparado é que quando as pessoas cá chegam pela primeira vez – aconteceu comigo e com muitas outras pessoas –, não querem sair daqui ao fim-de-semana. Sentem-se bem aqui. Têm medo de ir a casa. Eu nem o telemóvel ligava. Nem o tinha cá numa primeira fase. Não queria falar com ninguém, não queria ir a casa, não queria saber o que precisava, não queria saber a medida do elevador e se a cadeira cabia, não queria saber as medidas das portas, não queria saber de rigorosamente nada. Na primeira vez que estive cá, acho que não fui uma única vez a casa."


Fala de uma rejeição inicial, ultrapassada com a ajuda da equipa que encontrou em Alcoitão: "É um processo que custa muito. Uma pessoa vem para aqui com as expectativas muito altas e aos poucos e poucos vai apercebendo-se que não é bem assim. É o processo de aceitação e depois de adaptação à realidade, ao dia-a-dia."


Pedro Fonseca não esconde que ainda está nesse processo, considerando que durará a vida toda.


Actualmente não trabalha. A empresa que detinha de arte e design e publicidade fechou no início deste ano, não resistindo à crise provocada pelos confinamentos durante a pandemia da covid-19. Considera essencial trabalhar para ser uma pessoa activa, para ser parte da sociedade: "Mas falta dar o passo, da minha parte. Já lá vão oito anos… É um processo muito longo e complicado."


Este é um lado menos visível. Para quem depende de uma cadeira de rodas para se deslocar. O mais visível são as barreiras arquitectónicas. Em Lisboa, onde Pedro Fonseca vive, não faltam.


"Já cheguei a ir a bancos em que fiquei à porta. Bancos novos, construídos de raiz. Há muitas dessas dificuldades", afirma, exemplificando ainda os buracos ou o facto de nem as pessoas estarem “preparadas para ajudar uma pessoa com mobilidade reduzida". "Portugal está muito longe do ideal", diz.


"Se o país estivesse preparado em todos os locais, seja um bar, restaurante, uma loja, seja entrar para o metro com uma cadeira de rodas, uma pessoa que não tem incapacidade também o faria e então bastava preparar tudo", reforça o Enfermeiro Saúl Ramalho.