Em defesa dos mais frágeis

  • 29-04-2021

A trabalhar na linha da frente dos cuidados de saúde, os Enfermeiros podem ser confrontados com situações de maus-tratos a crianças e jovens, às quais tem de ser dada uma resposta necessária, suficiente e adequada. É o que faz Gonçalo Guerreiro todos os dias no IPO de Lisboa. A SRSul quis ouvir o seu testemunho agora que chegamos ao fim de Abril, o mês dedicado em todo o mundo à prevenção dos maus tratos contra crianças e jovens.

Veja aqui o depoimento no Youtube

 

Especialista em Enfermagem de Saúde Infantil e Pediátrica, Gonçalo Guerreiro tem apenas 28 anos, mas revela uma experiência muito desenvolvida na capacitação da sua sensibilidade para perceber os sinais de violência perpetrados contra crianças e jovens. “ O Enfermeiro está numa posição de imensa relevância em matéria de maus tratos infantis, na sua prevenção, identificação e intervenção”, diz.

 

Em seu entender, o Enfermeiro deve saber reconhecer sinais de maus-tratos, mas sem fazer juízos de valor. Deve saber proteger a criança, recolher informação, respeitar e assegurar o apoio à família, promovendo a auto-estima, segurança e conforto da mesma. Deve saber encaminhar/intervir.

 

Mas, além de intervir na existência ou suspeita de maus tratos infantis, o Enfermeiro deve também actuar na sua prevenção. Como?

 

Através do cuidado centrado na família, orientando os pais sobre os cuidados e necessidades da criança, prevenindo possíveis ocorrências de negligência;

Através da identificação precoce de famílias de risco, providenciando o melhor encaminhamento/seguimento;

Através da identificação de sinais sugestivos de maus tratos, encaminhando da melhor forma e mantendo a vigilância em casos de suspeita;              

Reportando, notificando e encaminhando devidamente sempre que suspeite de possíveis situações de maus tratos.

 

Deve, contudo, evitar:

Emitir críticas ou juízos de valor perante os comportamentos e/ou sentimentos da criança ou jovem e das pessoas a quem ela está especialmente ligada emocionalmente (mesmo que seja a pessoa agressora);

Demonstrar dúvidas quanto à veracidade do que a criança ou jovem está a revelar, ou menosprezar a sua importância;

Deixar de ouvir uma criança ou jovem com deficiência, devido à provável necessidade de mais tempo e de um contexto adequado para que tal possa ocorrer;

Pretender resolver isoladamente a situação detectada.

 

Segundo Gonçalo Guerreiro, o Enfermeiro Especialista em Enfermagem de Saúde Infantil e Pediátrica tem como foco o cuidado à criança e à sua família/ pessoa significativa, em qualquer contexto que se encontrem, com o objetivo de promover o mais elevado estado de saúde possível.

 

Diferentes formas clínicas

Os maus tratos sobre as crianças e jovens podem ocorrer por:

- Negligência;

- Mau-trato físico, psicológico/emocional;

- Abuso sexual.

 

Negligência significa incapacidade de proporcionar à criança ou jovem a satisfação de necessidades básicas de higiene, alimentação, afecto, educação e saúde, indispensáveis para o crescimento e desenvolvimento adequados;

 

O mau-trato físico resulta de qualquer acção não acidental, isolada ou repetida, infligida por pais, cuidadores ou outros com responsabilidades face à criança ou jovem, a qual provoque ou possa vir a provocar dano físico;

 

O mau-trato psicológico/emocional resulta da privação de um ambiente de segurança, de bem-estar afectivo indispensável ao crescimento, desenvolvimento e comportamento equilibrados da criança/jovem;

 

Bullying (inclusive bullying cibernético) é o comportamento agressivo indesejável de uma criança ou um grupo de crianças que não são irmãos nem têm relações afectivas com a vítima. Envolve danos físicos, psicológicos ou sociais recorrentes, e é praticado frequentemente em escolas e outros contextos em que as crianças se reúnem, e on-line;

 

O abuso sexual corresponde ao envolvimento de uma criança ou adolescente em actividade cuja finalidade visa a satisfação sexual de um adulto ou outra pessoa mais velha.

 

Segundo Gonçalo Guerreiro, cabe à equipa de saúde, nomeadamente aos Enfermeiros especialistas em saúde infantil e pediátrica, identificar, numa perspectiva centrada na família, as necessidades especiais de cada criança, sinalizá-las, proporcionar-lhes apoio continuado e promover a articulação entre os intervenientes nos cuidados.

 

O Enfermeiro especialista deve estar especialmente alerta em relação às famílias disfuncionais, pois um funcionamento familiar desadequado, por parte de um ou mais membros em co-abitação com a criança e/ou jovem, pode comprometer o seu bem-estar global. Neste sentido, deve ser definido um programa individual de vigilância e promoção da saúde que facilite o desenvolvimento de capacidades e potencialidades que vise o bom desenvolvimento físico e psíquico da díade.

 

“A melhor forma de tratar o problema, é impedir que aconteça”, diz Gonçalo Guerreiro, citando um perito da ONU de nome Sérgio Pinheiro.

 

A SRSul saúda todos os Enfermeiros que na linha da frente são uma luz para a vida de muitas crianças e jovens vítimas de violência. E alerta: “Para que os serviços de saúde se tornem mais efectivos nesta matéria, é essencial a melhoria da aplicação dos mecanismos de prevenção da ocorrência dos maus-tratos, da detecção precoce das situações de risco e de perigo, do acompanhamento e prestação de cuidados e da sinalização e/ou encaminhamento de casos para outros serviços, sempre que se justifique, no âmbito de uma eficiente articulação funcional”.

 

Crimes

A Violência Doméstica, em 2018, e tal como verificado em anos anteriores, continuou a ser o crime contra as pessoas mais reportado a nível nacional, com 26.483 ocorrências. Neste seguimento, cerca de 4.000 crianças ou jovens com menos de 16 anos foram identificadas, como vítimas nestas ocorrências registadas.

 

Os últimos dados disponíveis, ainda relativos a 2018, apontam para que mais de 8.000 crianças presenciaram as ocorrências de Violência Doméstica.

 

Relativamente aos Núcleos…

 

Em 2019, o número de sinalizações de situações de risco infantil registado nos Núcleos de Apoio à Criança e Jovem em Risco (NACJR) e nos Núcleos Hospitalares de Apoio à Criança e Jovem em Risco (NHACJR) aumentou. Foram registadas 4718 ocorrências, sendo que, com os casos transitados de anos anteriores, foram trabalhados 8850 casos em 2019 (Direção Geral de Saúde, 2020).

 

No mesmo ano foram sinalizados 944 casos (+157 casos do que em 2018) ao 2º nível do Sistema de Protecção e foram sinalizados 381 (+119 casos do que em 2018).

 

História do Laço Azul

Abril como mês de prevenção contra os maus tratos a crianças e jovens está ligado ao Movimento do Laço Azul criado em 1989 nos Estados Unidos da América, concretamente no Estado da Virgínia.

 

Este movimento foi criado por Bonnie W. Finney, depois de saber que os seus netos tinham sido vítimas de maus-tratos por parte dos pais. As crianças apresentavam nódoas negras pelo corpo. O neto acabou mesmo por ser assassinado pelos pais. Como maneira de lidar com a dor, atou um laço azul à antena do seu carro.

 

Escolheu esta cor com a finalidade de representar os corpos magoados e repletos de nódoas negras dos seus dois netos, tornando-se ao mesmo tempo um símbolo de alerta para a luta na protecção das crianças contra os maus-tratos.

O movimento ganhou relevância a nível mundial e enfatiza o efeito da preocupação que cada cidadão pode ter no despertar das consciências da população, em relação aos maus-tratos contra as crianças, na prevenção, promoção e protecção dos seus direitos.

 

Contextualização histórica

Sec. XIX

Século marcado pela luta contra o trabalho infantil.

 

Sec. XX

1946 –  Foi criada a UNICEF (United Nations International Children’s Emergency Fund) - para responder às necessidades de crianças cujas vidas foram destroçadas pela II Guerra Mundial.

1959 - A Assembleia‐Geral das Nações Unidas promulga, por unanimidade, os Direitos da Criança. 

20 de novembro de 1989 – Adopção pelas Nações Unidas da Convenção Internacional relativa aos Direitos da Criança sendo que esta passa a ser considerada como cidadão dotado de capacidade para ser titular de direitos.

É importante referir que Portugal foi pioneiro no que concerne as disposições penais relativas a menores, pois se recuarmos no tempo, em 1911, mais precisamente a 17 de Maio, foi criada a primeira Lei da Infância e Juventude. Esta foi ao longo dos anos alterada. Estas sucessivas modificações resultam na Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro, actualmente em vigor, que, reconhecendo as vantagens da intervenção comunitária na protecção de crianças e jovens em perigo, e concomitantemente com a experiência anteriormente adquirida, regula a criação, competência e funcionamento das, então, denominadas Comissões de Protecção de Menores, e actualmente, Comissões de Protecção de Crianças e Jovens.

 

Sec. XXI

A 5 de Dezembro de 2008 foi criada a Acção de Saúde para Crianças e Jovens em Risco (ASCJR), que permitiu estabelecer uma Rede de Núcleos de Apoio no Serviço Nacional de Saúde, tanto nos ACES como nos Hospitais com atendimento pediátrico e nas Unidades Locais de Saúde.

A 21 de Outubro de 2019 é criado, no âmbito da Direção-Geral da Saúde, o Programa Nacional de Prevenção da Violência no Ciclo de Vida (PNPVCV).  O seu objetivo é reforçar, no âmbito dos serviços de saúde, os mecanismos de prevenção, diagnóstico e intervenção no que se refere à violência interpessoal, nomeadamente em matéria de maus tratos em crianças e jovens (integrando a Acção de Saúde para Crianças e Jovens em Risco), violência contra as mulheres, violência doméstica e em populações de vulnerabilidade acrescida.