Falar sem medos dos Cuidados Paliativos

  • 14-10-2023

Finitude. Uma palavra transversal a várias áreas da enfermagem, mas inevitavelmente presente quando se fala de Cuidados Paliativos. Saber lidar com ela quando se está com um doente, sem esquecer a família deste, é apenas uma parte do que o enfermeiro lida. Sendo impossível dissociar o enfermeiro da pessoa que é, aprender a questionar a sua própria finitude e assim viver e ajudar a viver melhor é algo intrínseco naqueles que fazem dos Cuidados Paliativos a sua especialidade.

 

A Enfermeira Especialista em Enfermagem Médico-Cirúrgica na área de Enfermagem à Pessoa em Situação Paliativa, Emília Fradique, há mais de 20 anos que se dedica a esta área. Inicialmente nos adultos, há cerca de sete que abraçou a pediatria. Fala em maturidade, treino, experiência como factores importantes e sendo que nada lhe falta, admite como ainda hoje tem de “digerir contrastes” das diferentes realidades que vai encontrando nas crianças que acompanha.

 

Emília Fradique, 59 anos, leva-nos até ao mundo dos cuidados paliativos, muito desconhecido para quem está fora da área da saúde, considerando que falta literacia: “Temos de dar mais a conhecer à cidadania e falar sem medos."


E é sem medos que fala do que um enfermeiro enfrenta, dos conselhos que dá aos seus alunos e de como ela própria lida com desafios que vão muito além da questão clínica. A comunicação é colocada como ponto essencial, tanto com o doente, como com a família e até com os próprios colegas.

 

Importância da maturidade

 

Neste Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, Emília Fradique, começa por destacar a importância da "maturidade pessoal". "Os cuidados paliativos não são só intervenções de uma equipa multidisciplinar em fim de vida, mas ao longo de um processo, de uma doença incurável progressiva. Qualquer fase é sempre difícil de cuidar nos cuidados paliativos, independentemente se a pessoa está numa mais próxima da morte, ou menos próxima. Tem a ver com o sofrimento, de lidar com o sofrimento do outro, qualquer que seja a fase que a pessoa está a passar na doença", refere.


E acrescenta: "Para isso, tem de existir uma maturidade também a nível pessoal [do enfermeiro]. Há a questão da finitude, como lidamos com a finitude. Não é só nesta especialidade, mas em todas as outras. Temos mesmo de intervir, não podemos ter estratégias nem barreiras de fuga porque senão, não estamos a fazer o nosso trabalho de especialistas."


Emília Fradique explica como "o enfermeiro ao lidar com a finitude do outro, coloca também em si algumas questões da sua própria finitude". Salientando como o enfermeiro tem vários instrumentos para exercer nos cuidados paliativos e estando inserido numa equipa multidisciplinar – reiterando como é essencial o treino –, a Enfermeira Especialista reforça que é necessário "ter a noção que o enfermeiro não está apenas como profissional, mas também como pessoa".


"Aquela pessoa tem de ter ela própria algum desenvolvimento pessoal e espiritual e sentir que tem alguma maturidade para que esteja também equilibrada relativamente a questões de fim de vida, da sua própria finitude, do lidar com pessoas que possam até ter questões que lhe toquem, como a mesma idade ou de alguém que é muito próximo do enfermeiro e que ama muito e que pode sensibilizar", explica.


Para Emília Fradique "o fio condutor para trabalhar numa equipa de cuidados paliativos é ser mediador do propósito e do sentido". Isto é, "as intervenções são muito pautadas por esse fio condutor, do enfermeiro intervir, mas ter sempre como plano o ser mediador que aquela pessoa consiga no alívio do sofrimento encontrar um propósito e um sentido para aquilo que lhe está a acontecer, ajudando-a na sua vulnerabilidade".


E não tem dúvidas: "Se o próprio enfermeiro não tiver um propósito e não lhe fizer sentido trabalhar numa equipa de cuidados paliativos, como é que vai conseguir dar empowerment para que o outro possa atingir esse nível? Não vai conseguir ser mediador desse processo."

 

Valorizar a vida


A essência do cuidar faz parte da base de formação académica em enfermagem. Emília Fradique destaca como "o enfermeiro trabalha até ao nível da compaixão", além da empatia.


Não se podendo dissociar o lado profissional do pessoal, "quando há um grau de satisfação grande do enfermeiro em trabalhar em cuidados paliativos, na maior parte das vezes, é uma filosofia que pode ser transmitida", considera a Enfermeira Especialista. "É a oportunidade do profissional de também perceber e valorizar a vida. Dar mais sentido à vida que tem e dar mais apreço aos momentos da vida", reitera.


Não havendo um botão para desligar quando se termina um dia de trabalho, Emília Fradique diz que é preciso ter um conhecimento pessoal muito bom. "Há que arranjar mecanismos… Eu adoro fazer meditação, adoro caminhar junto ao mar, dar importância a momentos simples… Cada um descobre o que lhe dá energia. O enfermeiro tem de ter capacidade para se conhecer, senão, muito facilmente, pode entrar em esgotamento", afirma. Saber pedir ajuda a um colega e haver uma partilha entre a equipa, considera ser muito importante.

 

Saber comunicar


Comunicar tem um papel relevante. Emília Fradique tenta passar isso aos seus alunos, mas não quer que estes se limitem a apontar frases, mas que entendam que a forma como falam, a expressão corporal, tudo pode ter influência quando estão com um doente, ou com a família, não esquecendo que ajudar no luto também faz parte.


A Enfermeira vai dando exemplos, como uma mãe que tem um filho a morrer pode libertar alguma raiva, frustração através de palavras que possam parecer mais agressivas.


"Os profissionais que estão bem preparados – e por isso temos de ter uma boa formação – têm de perceber que não é contra eles. A pessoa está tão zangada, tão revoltada, que é contra quem encontra que ela descarrega toda aquela raiva."


"Temos de saber comunicar muito bem. Eu digo que saber comunicar é como prescrever medicamentos, é uma arma terapêutica. Tanto pode ser maligna, como benigna. Se não soubermos comunicar e dissermos algo menos bom, até pode ser pior."


"Ou nós sabemos comunicar e desconstruir este sofrimento – e o enfermeiro tem de ser verdadeiro, congruente, assertivo – e dizer, como a esta mãe: ‘Nem consigo imaginar o quanto está a sofrer. Estou tão preocupada consigo, por favor, diga-me como a possa ajudar’, por exemplo. São estratégias, são treinos que faço com os alunos."


"Mas isto vem de dentro. Digo aos alunos que não estejam a escrever frases e metam no bolso e decorem. Vocês têm de se preocupar com aquela pessoa. Se se preocuparem genuinamente, vão encontrar o que é mais certo e até mais adequado para vocês naquele momento."

 

Conselhos e aprendizagem


Emília Fradique é actualmente Coordenadora da Equipa Intra-Hospitalar de Cuidados Paliativos Pediátricos do Hospital de Santa Maria. Lidar com crianças tem as suas particularidades e nem todos estão preparados para elas.


"Os enfermeiros mais jovens têm alguma dificuldade relativamente à morte em pediatria. Em pediatria é muito importante a formação, ter a noção de nos expor mais com instrumentos, com formação e treino e não tanto como pessoas. Senão acabamos por ficar demasiado embebidos na relação paternalista e a relação profissional pode ficar comprometida", realça.


No entanto, acrescenta que tal não significa que não se tenha emoções e fala como ela própria tenta gerir algumas situações nesta área pediátrica. Explica como é diferente lidar com casos em que se recua a diagnósticos eventualmente até em fase pré-natal, ou aqueles em que tudo mudou num instante, como um atropelamento ou uma meningite, por exemplo.


"Ainda estou a digerir um pouco estes contrastes. Mas não me impede de fazer as minhas intervenções. São as minhas introspecções."


Desafiada a recordar algum caso que a tenha marcado mais, Emília Fradique começa por dizer que tem muitos: "Eu não personalizo. Eu faço revisões muito no sentido do que poderia ter sido melhor, o que é que não poderia."


Porém, acaba por contar quando numa visita ao domicílio a uma criança, esta gemia de dores e teve de receber morfina. "Começou a bater palmas e a cantar. Cantámos juntas, dançámos... Isto para mim é uma surpresa agradável e um aprender ainda na vida que esta é uma surpresa e que as próprias crianças nos ensinam a nós adultos."