Enfermeiros da Vida

  • 08-10-2020

O Dia Mundial dos Cuidados Paliativos é celebrado anualmente no segundo sábado de Outubro. A SRSul quer, este ano, homenagear todos os Enfermeiros que com a sua ciência, arte e empenho contribuem para a dignificação e significação da vida humana até ao fim. Esta é a área em que a expressão “ninguém está sozinho” mais se aproxima da melhor definição de humanização em saúde.

 

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), os cuidados paliativos visam melhorar a qualidade de vida dos doentes e das suas famílias. Neste caso, pessoas que enfrentam problemas decorrentes de uma doença incurável e/ou grave e com prognóstico limitado. Os Enfermeiros, e demais profissionais, actuam na prevenção e alívio do sofrimento, por meio da identificação precoce, avaliação perfeita e gestão da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais.

 

Os cuidados paliativos são, assim, a área de intervenção na qual os cuidados da Enfermagem surgem como o seu maior sustentáculo. O doente espera dos Enfermeiros, ao longo de um percurso mais ou menos longo, a defesa da sua dignidade e a garantia de vida com qualidade.

 

Porque “a dignidade humana é um valor essencial no exercício profissional da Enfermagem”, observa a Enfermeira Ângela Cruz, Mestre em cuidados paliativos pela Universidade Católica Portuguesa e responsável pela Equipa Coordenadora Local (ECL) de Lisboa Norte.  A sua experiência de supervisão nesta área permite-lhe avaliar com autoridade quão importante é o papel do Enfermeiro. Além da proximidade, factor sempre exaltado porque o cuidar pressupõe a troca de olhares, Ângela Cruz destaca o facto de o tratamento ser pensado em função da pessoa concreta.

 

Cada caso é um caso, cada pessoa é uma pessoa, e todas as famílias são diferentes. Por isso, defende Ângela Cruz, “o específico está implícito na Enfermagem”. E não menos importante é o Enfermeiro ser capaz de ver a dignidade na perspectiva dos doentes. “Sem juízos de valor”, observa. Ou seja, não obstante a possibilidade de humanizar a assistência em todos os seus aspectos, inclusive em relação aos familiares, o Enfermeiro, “deve pautar a sua acção pela evidência científica”, sublinha.

 

Noutros caminhos, que não o da evidência científica, o profissional de saúde, Enfermeiro ou outro, arrisca-se a ser dominado pela insegurança e pela angústia. E, nesta área, é fértil o terreno com profissionais agastados pelo confronto contínuo entre a vida e a morte. Por isso, defende Ângela Cruz, o Enfermeiro deve procurar, sobretudo, garantir cuidados seguros e de qualidade para que o tempo de vida do doente seja um tempo de qualidade e que esta qualidade signifique dignidade.

 

A formação é, em sua opinião, o grande desafio. Os cuidados paliativos exigem profissionais com o nível mais alto de formação – o nível 3. Porque, explica, só os profissionais bem qualificados conseguem alicerçar o seu trabalho na evidência científica. Os demais, por muito boa vontade que tenham, correm sempre o risco de serem dominados pelo sofrimento dos próprios doentes. “Deixemos de olhar para os cuidados paliativos como unidades que se sustentam na boa vontade dos profissionais”, apela.

 

Um profissional com formação avançada é capaz de respeitar, por exemplo, o que cada um escreve num Testamento Vital, ou compreender a posição do doente e dos seus familiares sobre a Eutanásia, debate agora tão em voga. “Há profissionais que nem questionam sobre o Testamento Vital; outros, nem formação têm para falar sobre a Eutanásia”, garante.

 

Neste sentido, a Enfermeira deixa o apelo para que os cuidados paliativos sejam encarados de uma forma mais profunda e séria. Segundo as suas palavras, é recorrente ver unidades de cuidados paliativos com recursos humanos desfalcados. Mesmo quando os cuidados são prestados no domicílio, as equipas surgem reduzidas e sem formação avançada. Um panorama que, segundo as suas palavras, cria medo e angústia nas famílias e sentimentos de culpa e de revolta nos Enfermeiros. Ângela Cruz apela a um esforço individual e colectivo no sentido de que os cuidados paliativos sejam a imagem da dignidade com que a comunidade encara a doença, a vida e a morte.

 

Na verdade, lembra Ricardo Silva, Enfermeiro especialista em Enfermagem Médico-Cirúrgica (EMC) na área da pessoa em situação paliativa, “a complexidade e a exigência deste contexto requerem profissionais cada vez mais diferenciados”. Profissionais que saibam conciliar o saber técnico – para que possam controlar os sintomas - com o uso de habilidades interpessoais e emocionais – que lhes permitem saber lidar com os seus próprios sentimentos e com as emoções que identificam no outro.

 

Assim, “através da arte de estar presente e da ciência de intervenções baseadas na evidência, o Enfermeiro especializado em EMC consegue avaliar, diagnosticar e intervir no doente e na família com o objetivo de manter a dignidade, aliviar o sofrimento e potenciar a qualidade de vida”, explica.

 

Ricardo Silva destaca também o importante papel do Enfermeiro na formação dos restantes profissionais de saúde e das pessoas em geral. “Os Enfermeiros podem contribuir para a eliminação do estigma social associado a estes cuidados, potenciando a resposta da comunidade aos doentes e às famílias”, defende.

 

Assim, um dos desafios para esta área é a melhoria da abordagem paliativa - competência fundamental na resolução de problemas/necessidades inerentes às pessoas com doenças graves e/ou avançadas e progressivas, qualquer que seja a sua idade e diagnóstico. Esta abordagem, sublinha, “deveria ser transversal a todos os profissionais de saúde”. Isto é, “todos os serviços de cuidados de saúde primários, hospitalares e cuidados continuados integrados devem ser capazes de identificar os doentes com necessidades do foro paliativo e de prestar uma abordagem paliativa adequada”. Nos casos de maior complexidade clínica, o Enfermeiro sugere que haja a possibilidade de se pedir “apoio a equipas especializadas, as quais podem intervir enquanto consultoras ou na prestação direta de cuidados”. Ricardo Silva, tal como Ângela Cruz, é defensor deste “modelo colaborativo e integrado de cuidados paliativos”.

 

O crescimento da Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP) deve ser considerado uma prioridade.  Mas, este ensejo está dificultado pela escassez de profissionais com formação avançada e com experiência profissional nesta área.

 

Assim, sendo impossível formar a curto/médio prazo todos os profissionais necessários, Ricardo Silva propõe que seja dada prioridade à criação de novas Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos (ECSCP) e ao reforço das Equipas Intra-Hospitalares de Suporte em Cuidados Paliativos (EIHSCP) cuja existência já se regista em praticamente todas as estruturas hospitalares do SNS. (ver aqui texto do Enfermeiro Ricardo Silva)

 

Andreina Tavares, da ARS do Algarve, integra actualmente o grupo técnico de Apoio da Coordenação Regional da Rede Nacional de Cuidados Paliativos. A Enfermeira, Mestre em Cuidados Paliativos pela Faculdade de Medicina de Lisboa, chama a atenção para a questão da comunicação que, adequada e assertiva, torna-se a base de um acompanhamento de qualidade. “O Enfermeiro tem competências comunicacionais que lhe permite intervir em situação de sofrimento, prestando apoio emocional, normalizando sentimentos e fazendo reforço positivo quando necessário”.

 

É o que se chama uma relação de ajuda. “Esta relação promove um espaço seguro de respeito onde o doente e a família podem falar sobre assuntos importantes e tomar decisões de forma consciente, livre e informada”, explica. E alerta: “o Enfermeiro tem um papel relevante nos ensinamentos que realiza, os quais podem ser fundamentais no estreitar de laços afectivos entre o doente e a família no final de vida”. Segundo Andreina Tavares, “todos os Enfermeiros podem e devem realizar acções paliativas dentro dos seus contextos de trabalho, pois sabemos que existem pessoas com necessidades paliativas em diversos contextos”. Esta ideia é, aliás, transversal a todos os intervenientes neste texto.

 

A COVID-19 trouxe mais uma dificuldade. Segundo a Enfermeira, “a utilização do toque terapêutico e da proximidade física como intervenção no sofrimento em cuidados paliativos é prática muito frequente, mas que, agora, foi necessário limitar”. Este constrangimento, explica, “criou um vazio difícil de preencher que é referido pelos próprios doentes e familiares como difícil de gerir”. Esta questão é agravada pelo aumento dos doentes referenciados para as equipas. “Passamos a acompanhar mais doentes com os mesmos recursos, sem prejuízo da qualidade de cuidados prestados”, afiança.

 

A formação avançada é, em sua opinião, uma questão igualmente fulcral. “A formação em cuidados paliativos confere competências que permitem intervir de forma adequada perante as necessidades bio-psico-sociais e espirituais da pessoa que cuidamos, além de nos incutir espírito critico e poder de argumentação perante práticas como a futilidade ou obstinação terapêutica”, Mais. “A formação permite criar consciência crítica das nossas práticas e ampliar o conhecimento para que os cuidados possam ser mais direcionados, e para que as respostas às necessidades sejam mais ajustadas, permitindo-nos identificar necessidades”, explica.

 

Assim, Andreina Tavares considera “fundamental que os Enfermeiros tenham um papel activo a nível social em termos de ensinamentos, promovendo iniciativas onde se possa falar abertamente sobre as questões relacionadas com a morte e o final de vida”. Porque, afirma, “uma população esclarecida e informada poderá tomar decisões mais ajustadas e de acordo com os seus desejos”. E deixa um apelo: “É urgente reflectirmos sobre como queremos que sejam os cuidados que nos prestam no final de vida.”

 

O número de equipas e de profissionais que se dedicam a esta área tem aumentado  significativamente, assegura, embora reconhecendo que as equipas não dão resposta à totalidade das pessoas que necessitam de cuidados paliativos. Mas, “tem havido uma evolução positiva neste sentido”, garante, alertando: “É necessário que os cuidados paliativos continuem a ser incluídos nas agendas políticas e que todos compreendam a sua importância no SNS” (ver aqui texto da Enfermeira Andreina Tavares).

 

A responsável pela Equipa de Cuidados Paliativos do Hospital do Mar – Lisboa, Ana Raquel Pires, recorda que o Enfermeiro, “por ser o elemento da equipa que habitualmente tem uma presença mais assídua junto destes doentes, pode assumir o importante papel de gestor de caso no seio da equipa multidisciplinar”. 

 

Porque não há dúvida de que os cuidados paliativos são prestados por equipas multidisciplinares onde se contam também assistentes sociais, psicólogos, capelães e outros. Por outro lado, trata-se de cuidados que podem ser prestados em todos os contextos a doentes de todas as idades e membros das suas famílias.

 

Mas, para Ana Raquel Pires, pós-graduada em cuidados paliativos pela Faculdade de Medicina de Lisboa, há problemas e desafios que urge enfrentar. Por exemplo: a tão falada insuficiente formação dos profissionais; a escassez de recursos humanos; o reduzido apoio às famílias que acompanham estes doentes no domicílio; o número de camas de internamento insuficientes; grande assimetria de recursos a nível nacional; e os mitos em relação à expressão “cuidados paliativos” que adiam a integração dos cuidados paliativos no plano de intervenção. Acresce a isto, sublinha, “as restrições impostas pela pandemia”, assunto também abordado pela Enfermeira Andreina Tavares.

 

Ana Raquel Pires termina chamando à atenção para a necessidade de se reverem os ratios. “É importante não esquecer que os ratios devem ser adequados à complexidade destes doentes e ter em atenção os critérios de referenciação preconizados”, defende.

 

Todas as áreas de intervenção dos Enfermeiros são delicadas. Mas, porventura, esta será uma das que provoca maiores emoções. Neste sentido, Sérgio Branco, presidente da SRSul, manifesta o seu reconhecimento a todos os Enfermeiros que, com o profissionalismo, dignificam a profissão ao impedirem que a vida seja desvalorizada, seja qual for o estado de saúde em que se encontre “Quando garantem que nunca deixam ninguém sozinho, os Enfermeiros estão a assumir a defesa da dignidade da vida humana até ao fim”, disse.