Pela terapia da Esperança

  • 03-02-2021

Neste Dia Mundial do Cancro, a SRSul saúda todos os Enfermeiros que, em contexto de ameaça à integridade humana, ajudam as pessoas a manterem vivos o sentido e o significado da vida. Recolhemos o testemunho de Patrícia Matos Martins , uma Enfermeira que acredita na terapia da Esperança.

 

“O Enfermeiro assume um papel fundamental e privilegiado na promoção da esperança dado ser o profissional de saúde que mais tempo passa com o doente”, afirma a Enfermeira Patrícia Matos Martins, Mestre em Enfermagem e Enfermeira especialista médico-cirúrgica na unidade funcional de oncologia do Centro Hospitalar Barreiro-Montijo, pós graduada em intervenção clínica em cuidados paliativos. É também autora do livro "Vou fazer quimioterapia. E agora?"

 

A doença, enquanto circunstância da vida humana, arrasta consigo muitas preocupações e dúvidas existenciais. Mas, a doença oncológica, especificamente, desperta mais ainda a dimensão do sofrimento espiritual e os sentimentos de abandono e desesperança. Por isso, para Patrícia Martins, cuidar é sempre um desafio que exige um olhar constante e atento para as diversas dimensões da vida humana - seja qual for a etapa do ciclo de vida.

 

Um dos grandes desafios é, precisamente, manter viva, no doente, a chama da esperança. Mas, o que significa Esperança?

 

Diz a Enfermeira: “Esperança é um conceito multidimensional e dinâmico, como que um poder ou uma força motivante que leva pessoa a transcender-se para uma nova consciência e enriquecimento do ser”. E adianta: “Trata-se de um conceito orientado para o futuro que acompanha a pessoa ao longo do ciclo de vida, assumindo particular relevo nas situações de crise.”

 

Pergunta: Estando a esperança orientada para o futuro e para a consecução de resultados positivos, não poderá parecer despropositado, e até inconveniente, falar de esperança a pessoas cujo futuro pode estar comprometido em meses?

 

“Viver na esperança não é viver na ilusão”, explica a Enfermeira, matizando: “ É, antes, acreditar que apesar das dificuldades do percurso, e de todos os obstáculos que possam surgir, a vida continua a ter sentido todos os dias, ainda em que num processo de doença oncológica”. Segundo Patrícia Martins, “diversos estudos têm demonstrado a importância do seu poder terapêutico, particularmente nos momentos de crise, documentando que aqueles que vivem com esperança lidam melhor com a doença”. Por outro lado, lembra, o próprio Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida tem vindo a alertar para a necessidade de se criar nas sociedades actuais um espaço para acolher a dor e o sofrimento do outro, ajudando-o a renascer.

 

A dimensão espiritual

Nova pergunta se impõe: Será possível falar de esperança sem uma espiritualidade que a eleve?

“Não, não é possível. A vivência de uma espiritualidade saudável ajuda a pessoa a reavivar a esperança, a encontrar significado e sentido para a vida e a lidar com a doença e incertezas do futuro de uma forma mais eficaz”, diz, atestando: “Não faz sentido falar em esperança sem falar em espiritualidade”.

 

Coloca-se ainda a questão de saber se não estaremos aqui perante uma perspectiva muito peculiar de ver o cuidar, imbuída de um olhar pessoal de fé ou meramente psicológico. Mas, Patrícia Martins assegura: “A medicina moderna encontra-se em transição procurando áreas do conhecimento, a par das ciências exactas, como a biologia molecular ou a farmocogenética, que lhe possibilitem uma mais abrangente visão do cuidar em saúde.” Ou seja, a medicina moderna abre-se a novos olhares sobre o ser humano, para além da tecnociência.

 

“Embora a espiritualidade constitua uma dimensão fundamental da vida humana que acompanha a pessoa desde o nascimento até à morte, apenas nos últimos vinte anos se começou a reconhecer a importância do seu poder terapêutico”, diz. Além de mais, acrescenta, “entramos na era da ‘medicina personalizada’, que traz novos conceitos, novos tratamentos e, por conseguinte, cada vez mais especificidade e complexidade”. Por isso, conclui, “torna-se fundamental assegurar cuidados especializados que tragam melhores resultados para as pessoas com doença oncológica”.

 

Para esta Enfermeira da unidade funcional de oncologia do Centro Hospitalar Barreiro-Montijo, a espiritualidade e a esperança assumem-se, pois, como componentes essenciais do cuidar, com particular relevância nos contextos de doença em geral e da doença oncológica em particular. “A espiritualidade e a esperança constituem componentes essenciais do cuidar”, sublinha.

 

É um facto que o impacto gerado pela doença a nível físico, e as incertezas perante o futuro, afectam profundamente a auto-imagem, assim como o relacionamento com os outros, levando a pessoa a interrogar-se sobre o sentido da vida. Além disso, “a pessoa com doença oncológica, independentemente do seu diagnóstico e estádio da doença, vivencia um percurso que contempla os espaços hospitalares, os tempos de espera, os ritmos dos tratamentos e dos protocolos terapêuticos, os diversos procedimentos de diagnóstico e o realinhamento constante de estratégias, onde cada vez mais se incluem as terapias sistémicas das quais faz parte a quimioterapia”.

 

Neste contexto temível e terrível, “esquecer a dimensão espiritual é desprezar o sentido da existência humana, pois a espiritualidade é uma característica exclusiva do ser humano que o eleva na sua dignidade e caracteriza como ser único e irrepetível", afirma.

 

Conforme explicou, “a espiritualidade, como princípio vital, pode ser definida como a assunção consciente do transcendente”. Poderá pensar-se, neste contexto, que estamos perante uma questão de fé, ou de um natural fenômeno de religiosidade. Patrícia Martins entende que não se deve confundir religião com espiritualidade. A primeira implicará, sobretudo, a adesão a doutrinas e cânones inspirados numa determinada divindade, ao passo que a espiritualidade significa a abertura ao transcendente, numa ligação a um Deus ou a uma Realidade última, seja ela qual for, sem a obrigatoriedade de um cânone catequético. 

 

Esta ligação com Deus ou com uma Realidade última, em seu entender, levanta questões e uma delas será, precisamente, sobre o significado e a finalidade da vida, interferindo também na mundividência da pessoa, na relação com os outros e com a natureza.

 

Os Enfermeiros

“Ao Enfermeiro em oncologia pede-se  que saiba ler nas entrelinhas, que vá além da tecnociência e     que ajude o doente a identificar as suas necessidades espirituais e fontes de suporte, encorajando-o a continuar a sorrir e a acreditar que o tempo que vive é vivido em plenitude e com qualidade”, defende a nossa interlocutora. A promoção da esperança, alerta, tem por objectivo ajudar a pessoa a melhorar as crenças que tem nas suas capacidades, existindo diversas intervenções que se podem revelar muito úteis, tais como:

Evitar esconder ou disfarçar a verdade;

Ajudar o doente a identificar os factores renovadores da esperança;

Ajudar o doente a estabelecer objectivos realistas;

Apoiar a revisão de vida e valorizar as conquistas obtidas;

Envolver a pessoa activamente nos cuidados;

Orientar a família para a promoção de factores encorajantes;

Proporcionar, caso o doente o deseje, a oportunidade para praticar a religião que professe ou para participar em grupos de apoio;

Encorajar o relacionamento com pessoas significativas.

 

No entender da Enfermeira Patrícia, “a área oncológica requer cada vez mais especialização, considerando o papel da enfermagem de extrema relevância no sucesso e na forma como as pessoas com doença oncológica e os seus cuidadores experienciam a doença”.

 

Para concluir, reforça: “É importante manter os doentes a par da sua situação clínica e ajudá-los a encontrar sentido e propósito na vida, mediante o planeamento de metas exequíveis e fomentando a vivência de uma espiritualidade saudável”.

 

Para a SRSul da Ordem dos Enfermeiros, assinalar este Dia Mundial do Cancro significa reconhecer a especificidade e a complexidade do cuidar num contexto de doença oncológica, compreendendo-se que, actualmente, se afirme como uma das prioridades nos programas nacionais de saúde por toda a Europa.  “Há uma evidente necessidade de investimento na prevenção, no diagnóstico e no acompanhamento dos sobreviventes de cancro”, afirma Sérgio Branco, presidente da SRSul, frisando que este trabalho, com o apoio do Conselho de Enfermagem Regional (CER), teve também o objectivo de felicitar e saudar todos os Enfermeiros que na linha da frente semeiam a esperança e nunca deixam ninguém sozinho.  

 

A Enfermeira Patrícia apresentou este tema no 2.º Meeting da SRSul. Veja o vídeo e subscreva o nossa canal no Youtube.