Luta contra o estigma

  • 30-11-2020

Mesmo em contexto de cuidados de saúde, as pessoas portadoras de VIH continuam a vivenciar o estigma (atitude e crenças negativas acerca dessas pessoas) e a serem vítimas de discriminação (tratar as pessoas de forma diferente pelo facto de terem VIH). Quem o garante é Catarina Esteves, Enfermeira na Unidade Funcional do VIH do Hospital de Cascais. Por desconhecimento? “É reconhecido que o conhecimento sobre o VIH (ou a falta dele) molda as atitudes de muitos profissionais de saúde”, responde.

 

Questionamos, por isso, neste Dia Mundial de Luta Conta a Sida, sobre qual deve ser, então, a atitude do Enfermeiro, sabendo-se que o VIH permanece um enigma de medo entre a população em geral.

 

Diz Catarina Esteves: “Na infeção VIH, a intervenção dos enfermeiros como agentes de cuidados diferenciados é imprescindível. Intervenção essa que abrange todas as dimensões do cuidar - do nascimento até à morte -, e é executada em variados contextos: hospitalar, cuidados de saúde primários, serviços prisionais, equipas de tratamento, comunidade e domicílio. Sempre – esclarece - “focados na educação para a saúde e na tomada de decisão partilhada, no rastreio e na prevenção, na adesão ao plano terapêutico, na ligação e retenção nos cuidados de saúde.”

 

Garante Catarina Esteves: “Uma equipa multidisciplinar da qual faz parte um Enfermeiro com conhecimentos diferenciados e competências especializadas, permite assegurar cuidados centrados na pessoa, com foco na promoção de respostas positivas a nível individual/ familiar,  na prevenção de doenças e ganhos em saúde.”

 

Filipa Gramacho, Enfermeira Chefe no Serviço de Doenças Infeciosas do CHULN - Hospital de Santa Maria, acrescenta: “Integrado na equipa multidisciplinar destas consultas, o Enfermeiro é a maioria das vezes o primeiro contacto entre o utente e o profissional de saúde. É a pessoa que procede ao acolhimento, que fala pela primeira vez na temática VIH, na dinâmica de todo um percurso que será, pela sua natureza, um acompanhamento para a vida.”

 

Lembra a Enfermeira que o primeiro impacto para as pessoas que vivem com VIH é o diagnóstico e a  sua aceitação, sendo logo nessa fase que o trabalho do Enfermeiro começa. Neste sentido, afirma: “É primordial desmistificar o VIH por forma a tornar mais linear a aceitação do diagnóstico. Tarefa dificultada logo à partida quer pelo estigma associado, quer pelo receio de uma situação nova com implicação direta na vertente física, emocional e social.”

 

Assim, será crucial a criação de uma relação terapêutica na primeira consulta. Pois, conforme explica, “o recurso ao Enfermeiro de referência permite ao utente e ao Enfermeiro o estabelecer de uma relação de confiança e empatia, fundamental ao acompanhamento.”

 

Mas, esta relação, sempre que o utente o considere benéfico, deve estender-se à família. Diz a Enfermeira: “A colaboração direta do Enfermeiro na transmissão do diagnóstico aos familiares, quer sejam pais, filhos ou companheiros, agiliza, em determinadas situações, o encarar da sua situação clinica, com benefícios diretos para o papel familiar e social que o utente desempenha na sociedade.”

 

Na mesma senda se coloca Cláudia Ferreira, Enfermeira no Hospital de Dia de Doenças Infecciosas do CHULN – Hospital de Santa Maria , para quem o papel do Enfermeiro é central. E explica: “Enquanto promotor da adesão à terapêutica, o Enfermeiro monitoriza a adesão, identifica fatores concorrentes e estratégias adaptativas para a melhorar”. Além de que, sublinha, “assume frequentemente o papel de gestor de terapêutica, sendo quem maioritariamente a administra, atuando também na gestão de sintomas”. E questiona: “E porque não falar na gestão de feridas, já que é o profissional de saúde mais capacitado para o fazer?”

 

Para Cláudia Ferreira, o Enfermeiro promove também o autocuidado, fomentando a autonomia e minimizando as consequências da doença. Esclarece: “Quando se fala de autonomia fala-se de educação para a saúde e da capacitação das pessoas, famílias e cuidadores informais, no sentido de lhes proporcionar uma maior e melhor qualidade de vida”. E enquanto educador para a saúde: “incentiva a adoção de comportamentos saudáveis e seguros, desmistificando crenças, sensibilizando para quebrar as correntes do estigma e do preconceito.”

 

 O Enfermeiro dedicado à pessoa com VIH terá de ter disponibilidade, abertura mental e sensibilidade para escutar e aconselhar acerca dos mais diversos temas de saúde. Afirma Cláudia Ferreira: “O Enfermeiro é mediador de uma resposta multidisciplinar, em rede, articulando profissionais de saúde quer dentro quer fora da instituição, envolvendo também estruturas da comunidade”. E sublinha: “Acredito que o trabalho dos enfermeiros no cuidado à pessoa com VIH faça muita diferença. O Enfermeiro ajuda a abrir o caminho para que a pessoa o consiga percorrer.”

 

E remata: “Porque, apesar de todas as solicitações que por vezes parecem vir de todos os lados em simultâneo, ainda assim o Enfermeiro está lá com a sua capacidade de escutar, de dar a mão, de sorrir, de ajudar.”

 

Envelhecer com HIV

Há um facto reconhecido pela Enfermeira Catarina Esteves: “Pela primeira vez na história desta doença há uma geração de pessoas que está a envelhecer com VIH”. Ou seja, o paradigma dos cuidados mudou depois que a infeção por VIH passou a ser uma doença crónica.

 

Tecnicamente falando: “Há medicação antes de haver doença (profilaxia pré-exposição); há medicação quando há risco de se vir a ter doença (profilaxia pós-exposição); há medicação para tratar quando há doença (terapêutica antirretroviral)”.

 

Assim, explica a Enfermeira: “A medicação funciona e é eficaz, de tal forma que uma pessoa que vive com VIH, que cumpre com tratamento e tem carga viral indetetável não transmite o VIH (Indetetável = Intransmissível). Existem regimes de um comprimido por dia com poucos ou nenhuns efeitos secundários. Há testes rápidos na comunidade e envolvimento das comunidades para cumprir as diretrizes focalizadas no diagnóstico precoce e na quebra da cadeia de transmissão.”

 

Neste contexto, é evidente o otimismo de Catarina Esteves: “Podemos hoje, pela primeira vez na História desta doença, falar em acabar com o VIH.”

 

Otimismo que advém do facto de a ONUSIDA ter estabelecido as metas 90-90-90 até 2020, que significam: 90% das pessoas que vivem com VIH estarem diagnosticadas; 90% destas receberem tratamento; e 90% das pessoas sob terapêutica atingirem a supressão vírica, como o primeiro passo para extinção do carácter epidémico da infeção VIH.” A Enfermeira esclarece que em Portugal já se atingiram valores superiores a 90 em cada um dos três pilares e que a segunda etapa estabelecida para 2030 é o aumento das metas para 95-95-95.

 

E conclui: “O papel da Enfermagem é vital na gestão, adaptação e reorganização do indivíduo à nova condição de saúde.”

 

Agora, regressamos ao olhar de Filipa Gramacho: “A eficácia do tratamento permite, hoje, termos utentes mais velhos com comorbilidades próprias da idade, mas muitas vezes agravadas pelo VIH. Permite-nos também ter mulheres que entram na menopausa muitas vezes precocemente; mulheres em idade fértil com alterações da fertilidade devido ao VIH; jovens adultos com doença crónica e medicação crónica, por vezes com tantos anos de evolução como de vida; intervenção directa em grupos específicos, como a população reclusa com VIH - entre outras situações particulares.”

 

Segundo a Enfermeira, estes contextos “implicam o estabelecer de uma relação de ajuda, uma relação terapêutica que apresenta, de certo modo, desafios diferentes.” E perante todas as frentes, garante Filipa Gramacho, “o Enfermeiro dá resposta às necessidades, angústias, medos, mitos.”

 

A pensar no amanhã, a Enfermeira Filipa aponta como principal desafio a avaliação de PRO –Patient Report Outcomes, com avaliação de valor em saúde e ganhos em saúde para o utente e família. Ou seja, “avaliar o que é efectivamente importante para o utente que se encontra à nossa frente, ir ao encontro das suas necessidades individuais e específicas, medir resultados da nossa intervenção, aceder a resultados de outros centros, comparar e melhorar formas de abordar o utente”. E conclui: “Acredito ser este o futuro.”

 

Mas, apesar dos esforços farmacêuticos no sentido de melhorar a adesão à terapêutica anti-retroviral, fundamental para o controlo da infeção, há desafios que ainda persistem na ótica da Enfermeira Cláudia Ferreira, nomeadamente: “O desconhecimento que mina as opções das pessoas que vivem com VIH, a resiliência necessária para adaptação a uma condição de saúde crónica, as possíveis alterações cognitivas decorrentes da própria infeção, as fragilidades sócio-económicas que expõem ainda mais as pessoas que vivem com o VIH e suas famílias, os contornos da ‘nova’ toxicodependência”. Tudo isto, em seu entender, “faz com que seja necessária uma resposta integrada na promoção da retenção no tratamento e nos cuidados de saúde.”

 

Não obstante as dificuldades, os contratempos, as contingências, Cláudia Ferreira reconhece-se perfeitamente enquadrada no seu trabalho. “Ser Enfermeira no cuidado à pessoa com VIH começou por ser uma escolha. Hoje é um gosto. O desafio de manter atualizado o conhecimento em vertiginosa evolução, a perceção de que o ser humano tem uma extraordinária capacidade de adaptação e a vontade de fazer parte de uma força que rompesse com o preconceito e com a estigmatização, ganharam-me quando, em 2004, fiz essa escolha.”

 

Com ao apoio do Conselho de Enfermagem Regional (CER),a SRSul quis assinalar este Dia Mundial de Luta Contra a Sida para homenagear os Enfermeiros que todos os dias dão o seu melhor para que ninguém se sinta sozinho.  Sérgio Branco, presidente da SRSul, salienta o facto de associado a este contexto de doença estar todo um mundo de preconceitos, estigmas e discriminações que tornam ainda mais desafiante o trabalho do Enfermeiro.