Diferentes mas não desiguais...

  • 08-10-2020

10 de Outubro. A humanidade assinala o Dia Mundial da Saúde Mental. A SRSul associa-se a esta efeméride para saudar os Enfermeiros que, todos os dias, ajudam o ser humano a manter-se unido, em si e na comunidade, num perfeito equilíbrio celebrado em felicidade.

 

“O Enfermeiro é, per si, um profissional de saúde privilegiado no que à relação com a pessoa diz respeito. Não só pelo princípio intrínseco da Enfermagem  - o cuidar do Outro e a capacidade para se solidarizar com pessoas, grupos e família -, mas também pelo tempo ao lado dessa pessoa. Tempo que tem de ser de qualidade” – a afirmação é de Patrícia Pereira, Especialista em Saúde Mental e Psiquiatria pela Escola Superior de Enfermagem de Lisboa (ESEL). Esta Enfermeira do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central - Unidade Partilhada, Internamento de Saúde Mental e Psiquiatria -, põe a tónica no tempo de qualidade para explicar: “Na área da saúde mental, o Enfermeiro realiza intervenções para auscultar ruídos, transformando-os, dando-lhes um novo sentido”. Por isso, sem duvidar, atesta: “o Enfermeiro deve aceitar para si um papel central na equipa multidisciplinar, assumindo-se como um bom elemento de articulação e garantindo que a pessoa é considerada e valorizada numa perspectiva bio-psico-socio-espiritual”. E sublinha: “o Enfermeiro acrescenta valor à pessoa, maximiza as suas potencialidades e minimiza as suas dificuldades”. Porque, esclarece,  “valorizamos a autonomia, o empowerment do nosso doente, trabalhamos focados naquilo que a pessoa é capaz de fazer e ser”. Patrícia Pereira, garante: “Estamos perto, acompanhamos as pessoas e as famílias nas suas actividades de vida, e é exatamente por vivermos essa proximidade que somos importantes nesta área tão nobre!”. Ou seja, “na saúde mental fazemos a diferença”, afirma.

 

O Enfermeiro Nuno Correia, da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, corrobora: “O Enfermeiro Especialista em Saúde Mental e Psiquiatria (EESMP) compreende os processos de sofrimento, a alteração e perturbação mental do doente assim como as implicações para o seu projecto de vida, percebendo também o seu potencial de recuperação e a forma como o afectam os factores contextuais”.

Toda esta percepção implica Tempo, o tal Tempo de qualidade, a tal aproximação de que falava Patrícia Pereira. Neste sentido, Nuno Correia, também ele Enfermeiro especialista, e Mestre pela Universidade de Évora, entende que “são as competências de âmbito psicoterapêutico que permitem ao EESMP desenvolver um juízo clínico singular”. Estamos perante “uma prática clínica em Enfermagem distinta das outras áreas de especialidade”, conclui.

 

Para João Garcia, do Conselho de Enfermagem Regional (CER) da SRSul e coordenador técnico no Centro de Respostas Integradas do Litoral Alentejano, o EESMP representa “o apoio e o seguimento de proximidade, prevenindo a próxima crise, evitando mais um internamento compulsivo, mais uma ida a uma urgência ou/ e mais um internamento na especialidade de psiquiatria”. Em algumas comunidades, esclarece, “são o único recurso das famílias, dos vizinhos, para resolver problemas complicados com pessoas vítimas de problemáticas de saúde mental”. Na opinião deste Enfermeiro com mais de 30 anos de experiência profissional, o EESMP torna-se um líder na comunidade onde haja um doente mental grave, como seja, uma pessoa com diagnóstico de esquizofrenia, doença bipolar, depressão major, distúrbios de personalidade, comportamentos aditivos, entre outras, ajudando a dar o devido seguimento.

 

Desafios

“Mudar, uma vez por todas, o paradigma de acção, desenvolvendo-se políticas que apostem nos cuidados na comunidade” - é o maior desafio que se coloca hoje à saúde mental, defende a Enfermeira Patrícia Pereira. Em sua opinião, o foco deverá incidir “na promoção da saúde mental e na prevenção da doença” e, por isso, faz o apelo: “devemos melhorar, sem dúvida, os cuidados de saúde primários, majorar as equipas e a sua capacidade de resposta”.

 

Lembra a Enfermeira que, a nível nacional, a prevalência da doença mental, particularmente na área das perturbações depressivas e ansiosas, é enorme. “É uma das mais elevadas a nível europeu”, nota, lembrando: “Sabemos que entre os primeiros sintomas e a altura em que a pessoa pede ajuda passa mais de um ano”.

 

João Garcia acrescenta: “Neste tempo de pandemia por um lado, e crise social, económica e política por outro, seria interessante procurar instituir formas de trabalhar em equipa e em rede, por forma a rentabilizar os recursos existentes”. E em jeito de recado aos decisores, aconselha: “ O financiamento da saúde mental deveria assentar nos indicadores de saúde e não nos indicadores de doença, como está instituído actualmente, fazendo-nos andar sempre atrás do prejuízo”.

 

Este desafio de João Garcia é ilustrado desta forma por Patrícia Pereira: “Num momento em que tanto falamos da sustentabilidade do SNS, é absolutamente fundamental pensarmos numa saúde mental com mais saúde e menos doença!”. É isto que pensa a Enfermeira, a que acrescenta: “Se munirmos as nossas comunidades com uma resposta mais efectiva, seguramente que vamos evitar situações psicopatológicas tão graves e duradouras e vamos aproximar as pessoas dos cuidados”.

 

João Garcia dá mais um passo no sentido do que poderá ser a Enfermagem no futuro. “Para os EESMP, o grande desafio seria caminhar no sentido da sua maior autonomia e assumir a seu cargo a prescrição de alguns medicamentos a definir em sede própria”. E justifica: “Isto porque, na prática, é o Enfermeiro que faz o seguimento na comunidade de várias patologias crónicas em saúde mental, procurando maximizar processos e minimizar tempos de intervenção.” Na verdade, a prescrição de medicamentos por Enfermeiros será uma realidade incontornável. Em Portugal, este é um caminho que já foi legalmente iniciado com a transposição do artigo 42.º da Diretiva 2005/36/CE, ainda que o Estado português se encontre em incumprimento quanto à sua concretização no ordenamento jurídico nacional.

 

Dar mais autonomia ao EESMP, de que fala João Garcia, é também justificado pelos desafios colocados pela própria sociedade, acrescenta o Enfermeiro Nuno Correia, destacando: “o rápido envelhecimento populacional, o aumento da prevalência de doenças crónicas decorrentes de estilos de vida não saudáveis, a exacerbação dos fluxos migratórios, a deterioração da empregabilidade e condições de trabalho e a crescente dificuldade dos serviços de saúde em darem respostas”, explicou.

 

Que políticas?

Em todo este contexto é preciso pensar em estratégias de ataque à saúde mental.

 

Na opinião de Patrícia Pereira, o Plano Nacional de Saúde Mental já existe, nomeadamente o de 2017, o qual significa um incremento de iniciativas na área. Mas, o problema é sua aplicação no terreno. “Infelizmente, existem ainda entraves à operacionalização dos programas de saúde mental”, diz, sublinhado: “os maiores constrangimentos advêm da falta de estratégias quanto à acessibilidade e alocação de recursos, o que parece representarem um entrave significativo à operacionalização das políticas desenhadas”.

 

Nuno Correia observa que dificilmente teremos planos perfeitos porque nada é estanque. “A reforma da saúde mental não está completa e dificilmente estará pois o mundo encontra-se em constante mudança e as problemáticas não se extinguem, apenas se alteram.” O apelo deste Enfermeiro é no sentido que também nesta área da saúde todos se empenhem, permanentemente, na atenção aos sinais do Tempo.

 

João Garcia propõe que se reveja a lei do internamento compulsivo. “A actual é muito burocratizada e por vezes traumática para todos os envolvidos e, em particular, para o paciente”. Em alternativa, sugere, “deveriam ser constituídas equipas comunitárias de saúde mental, as quais, através de uma visita domiciliária e com uma prescrição adequada, evitariam muitas idas aos serviços de urgência, já de si sobrelotados, e o recurso ao internamento em psiquiatria, em último caso”.

 

Enfim, “precisamos de acção”, sublinha Patrícia Pereira, como que a dar um murro na mesa. “Aumentar as sinergias e parcerias entre o sector público, social e privado; dotar as unidades de saúde mental locais de maior autonomia, no que respeita à decisão de contratação de recursos humanos; a existência de incentivos para a mobilidade geográfica dos profissionais de saúde. Por agora, já seria um excelente caminho....”, alerta.

 

Neste navegar tempestuoso, mas com nobres destinos, temos de nos preocupar também com a saúde daqueles que são os timoneiros da embarcação, alerta João Garcia. “Devemos ter em conta que os técnicos de saúde mental são pessoas também elas em risco de patologia mental. Logo, deveria haver linhas orientadoras e protetoras que apoiassem os seus intervenientes”. Está dito! Recorde-se que, no contexto da actual pandemia, a Ordem dos Enfermeiros criou uma linha de apoio precisamente pelas razões aqui aduzidas, mas talvez a ideia tenha de passar para um plano mais amplo.

 

Serviu esta “conversa” entre estes três Enfermeiros para assinalar o Dia Mundial da Saúde Mental. Tal como explicou o presidente da SRSul, Enfermeiro Sérgio Branco, estamos numa área da saúde complexa, sobretudo porque ainda há muitos preconceitos, estigmas, medos, resultante de uma iliteracia hoje em dia já pouco compreensível. Por isso, diz, “o abraço a todos os Enfermeiros que todos os dias mergulham no Tempo daqueles que sendo diferentes, não são desiguais…" 

 

Sérgio Branco recorda, a propósito, a história da raposa que, ao romper do sol, olhou para a dimensão da sua sombra e logo pensou que para se alimentar em proporção necessitaria de um camelo. Andou toda a manhã à procura do camelo. Ao meio dia, com o sol a pique, voltou a observar a sua sombra e verificou que, se calhar, um rato bastaria para saciar a fome. Para esta ou outra qualquer área da saúde, o presidente da SRSul lança o apelo: “Deixemos de nos guiar pela própria sombra…”.