É dia de dizer Obrigado!

  • 07-03-2021

Assinalar o Dia Internacional da Mulher é para a SRSul um acto que naturalmente se impõe. A Enfermagem, na verdade, é exercida por uma maioria significativa de mulheres - cerca de 80%.

 

Pensando na pandemia, logo notamos como a frente de combate ao vírus SARSCoV2 foi protagonizada no feminino – jovens mulheres, mães com filhos ainda muitos pequenos, esposas, avós, algumas das quais “obrigadas” a afastarem-se temporariamente das suas famílias para evitar os contágios. Este ano, o Dia Internacional da Mulher deve ser assinalado com um sublime Obrigado a todas as Enfermeiras - destemidas, abnegadas, altruístas, solidárias, competentes, altamente profissionais. Foi fantástico o exemplo durante todo o período de crise sanitária no País e o mundo. Eis, aqui, a nossa singela homenagem carregada de simbolismo.

 

Para que nada se dilua no abstrato, a SRSul convidou quatro Mulheres, Enfermeiras, a prestarem o seu testemunho sobre o modo como gerem as suas vidas, e a forma como a Enfermagem as realiza enquanto pessoas e enquanto profissionais.

 

Começamos com Marisa Chaínho. “Além de Enfermeira e gestora, sou esposa e mãe de duas crianças: uma menina de seis e um menino de oito anos. Acima de tudo sou feliz e realizada não só a nível profissional como pessoal”.

 

O Dia Internacional da Mulher foi o mote da nossa conversa. O modo como exterioriza o seu interior mais íntimo, quando fala de si e da sua família, parece ilustrar leves rotinas hedónicas. Mas, a sua vida é também guiada por outras luzes bem mais densas.

 

Marisa Chaínho, 41 anos, exerce funções de chefia no Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital Curry Cabral desde há três anos. A sua vida alterou-se quando a 3 de Março do ano passado ali deu entrada o primeiro doente com o vírus SARSCoV2. O seu serviço, no seu hospital, “o hospital do coração”, como gosta de o chamar, passou a ser a referência para esta nova doença – a covid-19.

 

De todos modos, o primeiro impacto nem por isso foi trágico. Em 2009 já a gripe pandémica  H1N1 tinha alertado os profissionais de saúde, particularmente naquele hospital,  e ainda todos se recordavam dos 124 óbitos então registados.  Depois disso, o hospital voltaria a elaborar um plano de contingência para combate ao vírus Ébola que se apresentava então como uma ameaça. Durante dois anos trabalhou-se na formação da equipa e interagiu-se com a Direcção-Geral da Saúde (DGS) e com as Forças Armadas - as entidades que dão apoio aos planos de contingência… “Já estávamos habituados a preparar-nos para enfrentar doenças infeciosas e emergentes. De qualquer forma, foi inesperado o que veio acontecer no início de 2020”, confessou-nos.

 

Ainda o assunto se mantinha muito reservado no seio da DGS, e um vírus com origem na China era referido de forma vaga, já o hospital começara a elaborar um pano de contingência. A Enfermeira participava num congresso sobre doenças infecciosas, a 25 de Janeiro, quando percebeu que iriam receber o primeiro suspeito com covid-19. “Já tínhamos muita coisa alinhavada. Não estaríamos preparados para esta doença específica, mas sabíamos como enfrentar situações de doenças infecciosas de saúde pública”, assegurou.

 

A partir de 3 de Março tudo se altera. “Preparamos o hospital inteiro mas sem que viesse a ser necessário. Na primeira vaga utilizámos apenas três dos serviços - infecciologia, medicina e uma das cirurgias”. Mas, a vaga do Inverno, sobretudo a partir de Janeiro, obrigou à aplicação do plano de contingência inicial que previa disponibilizar quase 300 camas para a covid-19, ou seja, todo o centro hospitalar.

 

“A minha vida pessoal desde há um ano que ficou um bocadinho em suspenso, sobretudo nos primeiros meses, porque a nossa prioridade tornou-se efectivamente aquela”, confessou. Há um ano que conhece a hora de saída de casa, mas não a do regresso ao descanso depois de ritmos alucinantes. Umas vezes envolvida na prestação directa de cuidados, outras envolvida no apoio logístico às equipas: ter material disponível em condições, fazer a articulação com todos os outros serviços de apoio, nomeadamente a farmácia, a empresa de limpeza, os consumíveis...  “Toda essa articulação é feita por mim e por uma Colega que me auxilia na gestão do serviço. Queremos diminuir a pressão sobre os Enfermeiros e os restantes profissionais que lidam com os doentes”, explicou a Enfermeira, frisando: “A equipa multidisciplinar deveria estar toda focada na segurança dos profissionais e nos cuidados e segurança dos doentes”.

 

Tudo isto significa mais horas de trabalho longe da família. “Decidi ir sempre a casa para estar com os meus filhos e com o meu marido para, assim, recarregar algumas energias emocionais imprescindíveis na luta de todos os dias”. Marisa Chaínho agradece o apoio do marido, dos pais e dos sogros. “A minha força sustentava-se na certeza de que os meus filhos se encontravam bem. Tinha saudades, mas estava a fazer o meu trabalho e sabia o quanto as pessoas precisavam de mim…”.

 

Serão inesquecíveis aqueles momentos antes de sair de casa, quando todos ainda dormiam. Havia sempre uma espada estrategicamente colocada, o brinquedo com que os filhos se imaginavam personagens da Star Wars, com um recado junto: “ Vai e mata os bichos…”. Era  a imagem a caminho do hospital que em todos os recônditos lugares sugava a energia que lhe permitia manter de pé. Como quando percebia o orgulho com que os filhos, à saída da escola ou numa qualquer paragem de autocarro, apontando os outdoores que mostravam uma Enfermeira a apelar ao uso de máscara, diziam aos amigos: “Aquela é a minha mãe”. “Sim, os meus filhos viam-me como uma heroína e isso também me dava um grande incentivo…”, confessa.

 

O facto de ser mulher é aquele factor “que é tudo”. É, desde logo, a grande dádiva para o milagre da maternidade e para tudo o mais na construção da felicidade.  “Eu gosto de ser mulher. Gosto de sentir esta capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo, fazendo umas, programando outras - isso é muito característico das mulheres”. E admite: “Se fosse homem acho que não teria conseguido o que consegui: este equilíbrio, esta capacidade de articulações múltiplas. Se fosse homem teria sido mais difícil”.

 

Reconhece, por outro lado, que, na Enfermagem, homens e mulheres, sendo naturalmente diferentes, partilham uma sensibilidade comum e que jamais se questionou acerca da igualdade de género.” Nunca senti qualquer tipo de discriminação”.  A igualdade de oportunidades – leia-se equidade - para Marisa Chaínho, é também um factor de equilíbrio que lhe permite afirmar, com toda a veemência – com personagens da Star Wars no olhar: “Sinto-me uma mulher feliz e realizada”.

 

 

Na Formação

“A Enfermagem não tem género” – a afirmação é de Sílvia Caldeira, 42 anos, Enfermeira que também vive intensamente a sua profissão, embora de maneira diferente.

 

Sílvia Caldeira dedica a sua vida a formar os futuros Enfermeiros e todos os que, já no exercício da profissão, continuam a aprofundar os conhecimentos, seja em pós-graduações, mestrados ou doutoramentos. Ela própria é doutorada pela Universidade Católica Portuguesa (UCP), onde lecciona e lhe é oferecido o ensejo de ser “muito feliz como pessoa e como mulher”, garante.

 

Trata-se de um lugar privilegiado de observação. O que perscruta a Professora? Desde logo o grande interesse dos Enfermeiros em progredir na profissão. “Confere-nos muita esperança ver turmas de mestrado, nas mais diferentes áreas clínicas, constituídas por Enfermeiros muitos jovens”, acontecendo “o mesmo nos doutoramentos”. Entre muitos outros factores positivos, isto permite também uma boa articulação entre o ensino e a prática. “Levam para a academia a sua curiosidade, as suas dúvidas, e depois regressam ao seu contexto de prática clínica com um enorme interesse em contribuir de forma rigorosa, e muito profissional, com todos os conhecimentos adquiridos”, explicou.

 

Embora tratando-se de uma licenciatura académica com reconhecimento só a partir de 1999, um ano depois de ter sido criada a Ordem dos Enfermeiros – “é tudo muito recente”, observa – o certo é que, segundo as estatísticas oficiais da Ordem, já existem 78 doutorados em Enfermagem. Só 78? – questionou.

 

Pelos vistos, este número não corresponderá à realidade. Na UCP, garante, já foram obtidos mais de 150 doutoramentos. Isto significa, por um lado, que nem todos os Enfermeiros comunicaram à Ordem a actualização dos seus graus académicos. Por outro lado, demonstra igualmente o volume de conhecimento científico que ao nível da Enfermagem já se regista em Portugal. “A produção é muito grande, sendo este um caminho construído ao longo de anos, com rigor, com diferentes actores, com diferentes instituições”. E avançou: “O nosso objectivo é transferir o conhecimento para a prática clínica com repercussão na comunidade para que melhore a saúde das populações, a sua qualidade de vida, o seu auto cuidado. É o que nos interessa…”.

 

Os doutoramentos são a prova mais evidente de que há muito conhecimento a ser produzido em Portugal sabendo-se ser esse o principal critério que confere estatuto ao ensino universitário. Neste sentido, levanta-se a questão de saber se, com tanta gente doutorada e com tanto saber científico, terá já chegado a hora de se pensar em transpor a Enfermagem do Ensino Politécnico para o Ensino Universitário.

 

Sílvia Caldeira admite que esta questão convoca a comunidade académica para uma grande reflexão . E afirma: “Existe conhecimento científico ao nível do doutoramento, com teorias desenvolvidas, com testes de intervenções, com uma série de conhecimento disciplinar desenvolvido que fundamenta a prática, que leva à construção de novo conhecimento, sendo tudo isto a génese de um ensino universitário. Esta construção de conhecimento próprio que alicerça a disciplina e que pode ser transferida para uma prática que alimenta novas investigações, é já uma realidade”. Ou seja, conclui: “A natureza do ensino e da aprendizagem em Enfermagem já é universitária…”.

 

O caminho vai-se construído também com o envolvimento da OE. Segundo as suas palavras, a instituição tem demonstrado esse interesse com todos os eventos de formação online que tem vindo a desenvolver, sobretudo no último ano. Tem também dado a oportunidade aos Enfermeiros de participar com a apresentação de trabalhos, salientando-se o facto de disponibilizar o acesso às bases de dados científicas. “Tudo isto é um indicador de que há este interesse por parte da OE, e de todas as secções regionais, nomeadamente a do Sul, em apoiar os Enfermeiros na construção do conhecimento”, reconheceu.

 

Para Sílvia Caldeira, “a formação em Portugal é muito completa, a nível técnico, a nível científico e a nível de humanização. Tem uma visão muito de Enfermagem. Os outros países têm visões um pouco diferentes que estão relacionadas com questões culturais e organizacionais”. Os nossos Enfermeiros, acrescentou, “levam muito consigo este sentido de fazer bem o que deve ser bem feito. É o comum da nossa formação em qualquer Escola. É um aspecto identitário que os Enfermeiros levam consigo”, explicou.

 

Daí o reconhecimento a nível internacional. “Além da capacidade de trabalho, os Enfermeiros são também muito bons na inserção em equipas. São competências basilares para uma boa integração em qualquer país”. Além de que, adiantou, são capazes de uma aproximação mais natural, mais abertos ao beijo, ao abraço, e isso facilita muito a relação com os doentes”.

 

A verdade é que existem muito mais mulheres do que homens no exercício da Enfermagem. Mas, segundo Sílvia Caldeira, isso não tem uma relação directa com a qualidade dos cuidados de saúde prestados em Portugal. “ A Enfermagem não tem género”, diz, e “o facto de haver mais mulheres do que homens está mais relacionado com factores históricos do que com o tipo de trabalho em si”. E lembra com humor os que falam sobre o Enfermeiro das suas vidas como se estivessem a falar da mãe: “quando tinha um dói-dói, cuidava do dói-dói, via a febre, dava a vacina…”. De facto, diz, “há ainda uma vertente muito maternal associada à Enfermagem”.

 

Haver mais homens? “Estamos a ter Enfermeiros com ‘E’ grande, Enfermeiros que sabem ser Enfermeiros, que sabem por que é que existem e o que se espera deles, independentemente do género. A Enfermagem não tem género”, disse.

 

Por outro lado, é preciso lembrar, a profissão tem uma história muito antiga, uma história maravilhosa e sedimentada, mas a OE só tem 22 anos, e a licenciatura apenas 21. “Temos de assumir isto com muita humildade, mas também com muita vontade de trabalhar”.

 

A Professora destaca ainda o contexto de igualdade de oportunidade registado no contexto da profissão. “Não é pelo facto de ser mulher que se tem menos oportunidades”, garante. Mas, na realidade, isso poderá não ilustrar uma verdadeira equidade na hora de se indicar uma pessoa para um determinado cargo de nomeação pessoal. “Se na escolha pesaram critérios como o de ser mãe de vários filhos, ter de os levar à escola, ter uma vida familiar mais complicada e que, por causa disso, uma mulher é preterida em prol de outra pessoa que é homem, sem encargos familiares, sem hobbies e que até vive perto do local de trabalho, isto, em si, constitui uma injustiça”, advertiu.

 

Neste sentido, Silvia Caldeira, nascida em Machico, ilha da Madeira, defende que este dia, o Dia Internacional da Mulher, deveria servir, sobretudo, para que as mulheres possam reivindicar o direito de serem plenamente mulheres. “Não deverá ser usado para almejar serem iguais aos homens”, alertou.

Em seu entender, “o que hoje em dia poderá condicionar as questões de carreira e de cumprimento de funções profissionais tem mais a ver com a constituição de família. Não é pelo facto de ser mulher em si mesmo. Porque, não há dúvida, as mulheres têm graus académicos iguais ou superiores aos dos homens e não há dúvidas sobre as suas elevadas competências”.

 

As eventuais situações de discriminação, explicou, acontecem, sobretudo, nos olhares impregnados por uma determinada cultura ancestral. “Porque sou mulher tenho de estar com os filhos porque se não sou logo epitetada de ambiciosa, mas se for um homem já será considerado um grande profissional…”. Depois, “se a mulher tem de deixar os filhos com alguém para ir a um congresso é vista como irresponsável”. Há, em seu entender, todo um enredo cultural que impele a mulher a ser “mãe perfeita”, a “única cuidadora dos filhos, a ser multifacetada”.

 

Sílvia Caldeira lembra as muitas Enfermeiras que no seu dia a dia têm de encontrar soluções difíceis de gerir: serem mães, serem profissionais, fazerem as compras, cuidar da casa…  auferindo salários incompatíveis com a necessidade de contratarem alguém que as apoie nessa gestão. “É muito complexo”, observa, crendo que poderemos estar perante “silêncios perigosos”.

 

Diz a Professora: “Parece que há uma conspiração do silêncio”. Em seu entender, “há muito sofrimento no silêncio das mulheres que são mães, que cuidam dos filhos sem se poder queixar, sem poder dizer: ‘estou cansada, isto é estafante, eu amo os meus filhos mas às vezes apetece estar sem eles durante um dia’”. E sublinha: “Acredito que há aqui um sofrimento associado a toda esta pandemia que esteja a afectar muitas mulheres e muitas mães”.

 

A compensação é, por vezes, “apenas o olhar de um filho que a considera heroína… ou que exclama: ‘Ó mãe, és tão bonita…’”. Diz a Professora: “É importante que os filhos compreendam os nossos sentimentos e as nossas emoções. E se perguntam se estamos tristes possamos simplesmente responder: ‘Não, só estou cansada…’. Isto não vem no salário, não enche a carteira, mas enche a alma…”.

 

Por isso, o apelo a que se fomente a cultura do elogio, sobretudo entre as chefias dos serviços de enfermagem. “Temos muito pouca cultura do elogio… Espero que as chefias dos serviços de enfermagem consigam olhar para um Enfermeiro e dizer: ‘obrigado pelo vosso empenho, sois fantásticos…’. Espero que haja este elogio.  Muitas vezes é apenas isto que os Enfermeiros esperam…”. Para Silvia Caldeira, “o elogio tem uma capacidade de motivação muito grande. Por vezes mais forte do que quando olhamos para a folha salarial. É preciso que o chefe diga: ‘eu sei que é difícil, mas conto contigo’… Estamos tão pouco habituados ao elogio que ficamos com algum desconforto e desconfiança quando o ouvimos. Não deveria ser assim”.

 

É pois necessário libertar a cultura de condicionamentos impeditivos de a mulher se sentir autenticamente mulher, independente das suas opções, podendo ser mãe, esposa, Enfermeira, investigadora, o que quiser ser, onde quiser e como quiser, sem nunca deixar de Ser….

 

Silvia Caldeira é mãe de gémeos com três anos – a Ana Clara e o Joaquim – é esposa, professora na UCP, em Lisboa, foi eleita diretora da comissão de Investigação da NANDA-Internacional, sediada no Boston College, sempre muito focada nas suas áreas de investigação que são a espiritualidade em saúde e a questão dos diagnósticos em Enfermagem, e é muitas outras coisas mais…   De si diz o que deseja para todas as mulheres: “Estou muito satisfeita com o meu trabalho, com os objectivos de vida e sinto-me perfeitamente realizada. Só posso estar grata”.

 

 

Um outro olhar

Filomena Martins, 64 anos, é também Professora, mas longe da Capital. Vive a interioridade de Portalegre, onde nasceu e cresceu, estando actualmente integrada no Corpo docente da Escola Superior de Saúde daquela cidade do Alto Alentejo.

 

Terminou o curso de Enfermagem em Fevereiro de 1978, quando o País vivia ainda os rescaldos de um golpe de Estado que se transformara em Revolução. Período de grande instabilidade social e política. A formação fora iniciada em 1975, tendo frequentado primeiro curso geral de Enfermagem na então Escola de Enfermagem de Portalegre.

 

Três meses depois de terminado o curso partiu para o Brasil, onde o então marido se encontrava a trabalhar. “A experiência foi fabulosa”, contou-nos. Embora ainda com pouca prática profissional, foi logo colocada como Enfermeira supervisora num hospital particular, na cidade de Fortaleza. À data, note-se, no Brasil já se ministrava o curso superior de Enfermagem, mas eram muito poucos os que o frequentavam. Por isso, logo que Filomena Martins lá chegou foi-lhe concedida a equivalência ao curso de Portalegre e pôde, assim, assumir as funções de supervisora.

 

“Foi uma experiencia para início de vida profissional muito marcante: pela supervisão, pela própria organização dos serviços e pela prática dos cuidados que era completamente diferente da nossa”, explicou. “Na altura, adiantou, a prática dos cuidados era feita por pessoas sem formação. Havia duas ou três licenciadas com a função de supervisão. A prestação de cuidados era desempenhada por pessoas sem qualquer tipo de formação.”

 

Regressou a Portalegre em 1983 sendo colocada no Centro de Saúde de Portalegre. Em 1988 apôs-se ao concurso para monitora na Escola de Enfermagem de Portalegre, com provas públicas, o que correspondia, na altura, à transição para a carreira de Enfermeiro de grau 2. E desde então dedicou-se à carreira docente.

 

É seu privilégio ter visto nascer o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e ter participado pessoalmente em toda a evolução do ensino da Enfermagem, desde o tempo me que ainda não havia doutores formados na área. O seu doutoramento foi obtido em Espanha.

 

Sobre o ensino/aprendizagem, não tem dúvidas: “Evoluiu para melhor… acho que a preparação agora é muito superior ao que era quando fiz o curso, não há sequer paralelo que se possa estabelecer”.

Uma evolução positiva que nos permite perceber o “assédio” de instituições de saúde estrangeiras sobre os Enfermeiros portugueses recém-licenciados, o que, para a Professora, é incompreensível.

“Sinto-me muito mal.  Se o nosso ensino não fosse tão bom possivelmente não seriam tão pressionados para ir trabalhar para outros países. Se são é porque são bons profissionais, têm conhecimentos, têm uma boa prática de enfermagem”, disse.

 

A Professora faz notar que a excelência dos alunos se constata não só no final do curso mas também noutras fases, como, por exemplo, nos Erasmos. “Os comentários e as avaliações feitas aos nossos alunos são fantásticas, seja a nível de licenciatura ou de mestrado. Terminam com notas altíssimas e isso acontece por algum motivo”, observou, lamentando: “Deveríamos aproveitar o que temos de bom, mas estamos a deixar fugir. Eles são bons seja em conhecimentos teóricos seja em conhecimentos práticos”.

 

Hoje em dia temos mais mestres e mais doutores, e tudo isso contribuiu para que a formação seja diferente. Mas, observa: “Não se pode desvalorizar o contributo que os profissionais da prática dão na formação dos alunos”. Ou seja, a aprendizagem em contexto de prática clínica é também de excelência.

 

E estariam os recém-licenciados preparados para esta pandemia?

 

“Ninguém estaria preparado para enfrentar uma calamidade destas, e nenhuma Escola terá preparado os alunos para uma realidade tão radical. Nunca me passou pela cabeça viver uma coisa destas. Sou professora de epidemiologia e é um assunto que se fala muitas vezes em termos de pandemia, e vamos à história e damos determinados exemplos, como a varíola, a peste negra, e outras… mas que alguém estivesse preparado para isto, estou em crer que não…”.

 

Trata-se de uma profissão maioritariamente constituída por mulheres. Mas, pensar que foi criada especialmente para elas “é uma ideia suportada por um estereótipo de enfermagem que sempre tentei destruir”, disse. Em sua opinião, é errado pensar-se que as mulheres possam ter mais características de cuidador ou que estejam mais vocacionadas. “Para qualquer profissão é preciso haver uma determinada apetência, ou porque se gosta ou porque se passou a gostar. Não é necessário ter vocação. É preciso que goste”, afirmou.

 

Aceita, no entanto, que as mulheres possam ter tido mais dificuldade em suportar o ritmo de trabalho imposto aos Enfermeiros no contexto da pandemia. Em seu entender, isso explica-se, sobretudo, pelo papel que a mulher desempenha na sociedade por razões também culturais. “Elas são em geral o único suporte dos filhos. Por isso o cansaço torna-se muito mais agressivo. A igualdade de género não está completamente vigente”, considera a Professora.

 

Embora quase sempre envolvida no ensino da Enfermagem, Filomena Martins não se sente desligada da realidade da prática clínica. Conhece a dificuldade experienciada pelos Enfermeiros no quotidiano, sobretudo a das mulheres, e, por isso, defende que ainda há um longo caminho a percorrer para que a equidade se imponha como modelo cultural.

 

No entanto, a sua realidade é diferente. O marido é também Professor na Escola Superior de Saúde tendo ambos optado por não terem filhos. Ambos se dedicam completamente a formar novos profissionais e a contribuir para a excelência da Enfermagem em Portugal.

 

“Sinto-me completamente realizada. Senti-me sempre realizada em todos os contextos por onde passei. A maior dificuldade foi no Brasil, mas isso tem a ver com questões culturais. Mesmo assim senti-me bastante valorizada e senti que a aprendizagem que tive também me valorizou. Sempre gostei daquilo que fiz…”.

 

Na verdade, sublinha, “nos contextos em que tenho trabalhado não tenho sentido qualquer tipo de discriminação por ser mulher. Fui vice-presidente da Escola durante seis a oito anos. Fui sub-directora durante quatro anos. Nunca senti isso na minha vida e nunca tive problemas em conciliar a minha vida pessoal com a profissional. Sinto-me perfeitamente realizada. Se voltasse atrás voltaria a fazer o mesmo”.

 

A isto se chama felicidade. A sua vida permite-lhe dizer, hoje, que a igualdade de género, felizmente, nunca foi uma questão com que tivesse de se confrontar.

 

Não mudaria mesmo nada? “Talvez de lugar. A interioridade pesa, a distância e os acessos também. Talvez tenha a ver com a densidade do actual contexto pandémico, com a idade ou com os anos de serviço. Vamo-nos cansando… mas sempre me senti realizada!”, confessou.

 

 

Mãe sozinha

Tem 39 anos e uma filha de seis. Há três anos que Sónia Sousa trabalha na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI)  do Hospital São Bernardo, em Setúbal. Assume como pior experiência de vida os dois meses em que se viu forçada a separar da filha, entregando-a aos cuidados dos seus pais para evitar contágios pelo SARSCov2, o vírus que provoca a doença da covid-19.

 

“Sou uma mãe sozinha. Os meus pais foram um pilar fundamental em toda esta situação pandémica. Foi muito difícil gerir a situação. Eles estavam sempre com muito medo que eu me contagiasse, mas ao mesmo tempo sentiam orgulho por verem a filha na linha da frente”, contou-nos. “Para eles – prosseguiu - seria muito mais fácil que a neta permanecesse comigo, mas eles próprios se dispuseram a ficar com ela”.

 

Com a filha bem protegida, Sónia pôde ficar física e mentalmente mais disponível para apoiar a equipa de trabalho, aumentando a quantidade de turnos no hospital. “O impacto inicial foi um arregaçar de mangas, um ir à luta com um sentido de missão como nunca antes tinha visto”, confessou. Segundo as suas palavras, todos os profissionais tinham naturalmente receio. “Lembro que não aguentávamos o equipamento durante muito tempo vestido, mas permanecíamos ali, apoiando-nos”. E observa: “Houve um grande sentido de missão, apesar do medo de nos contagiarmos. O medo foi desaparecendo”.

 

O mais surpreendente, explicou, foi constatar como toda aquela situação pôde gerar na sua filha atitudes de maior responsabilidade. “Senti que cresceu muito e muito depressa”, disse-nos, considerando também que as crianças, em geral, se adaptaram à situação pandémica muito mais facilmente do que os adultos, com um sentido de compreensão e de apoio”.

 

Não deixou, no entanto, de ser difícil. “Somos uma dupla com uma grande cumplicidade.  Se por um lado vi o crescimento dela fortalecido, por outro senti a nossa relação afectada, sobretudo pela minha ausência”. Passados aqueles dois meses de separação, nunca desapareceram os pedidos da criança para que a mãe trabalhasse menos, para que passasse mais tempo com ela. “Eu, de facto, com o passar dos dias, fui saindo dos turnos cada vez mais cansada, com mais vontade de descansar, e a minha filha notava e queixava-se: ‘Andas mais cansada?’. Ao mesmo tempo, mostrava compreensão e orgulho”. Comovida, atesta: “Tenho uma filha fantástica”.

 

As circunstâncias obrigaram a que a aproximação entre ambas tivesse de ser reinventada. “As nossas idas ao parque, as nossas brincadeiras, todas as nossas rotinas tiveram de ser readaptadas para a compensar”.  Por outro lado, se antes ela percebia que eu cuidava de muitas pessoas que podiam ser avós dela, depois percebeu que passei a cuidar de outras que poderiam ser pais dos amigos dela. “É impressionante, mas a compreensão dela perante tudo isto permitiu a que eu permanecesse sempre a sua heroína”, disse-nos.

 

Sónia Sousa é também de opinião que o facto de ser mulher e mãe a ajudou a ter mais força e coragem para enfrentar aquela realidade tão desconhecida quanto densa e dramática. “Não quero ser sexista, mas ser mulher dá-nos mais capacidade de criatividade, de ginástica mental, mais capacidade de adaptação”. A Enfermeira trabalha também no pré-hospitalar integrada nas equipas que se deslocam nas viaturas de socorro do INEM.  É uma área onde as mulheres escasseiam, pelo menos na região de Setúbal. “O certo é que conseguimos fazer o mesmo, desde a condução de viaturas até à gestão de situações mais perigosas”, observa.

 

O facto de a expressão feminina ser maioritária tem as suas compensações. “Quando alguma de nós fica mais fragilizada, a chorar, é mais fácil encontrar uma compreensão e apoio nesse sentido de aproximação”, disse, salientando: “Não só cuidamos dos doentes, mas houve um grande sentimento de equipa para que cuidássemos uns dos outros…”. E acrescenta: “Temos as emoções mais à flor da pele, ao passo que os homens mantiveram uma postura sempre mais calada, menos demonstrativa de momentos de fragilidade e de dificuldade”.

 

A Enfermagem, em si mesmo, acarreta riscos profissionais inerentes, e Sónia Sousa tem noção de que outras crises sanitárias podem ainda voltar. Diz-se preparada para tudo. Porém, duvida que possa estar preparada para se afastar novamente da filha. “Isso, não!”, confessa.

 

Esta homenagem a todas as Mulheres Enfermeiras contou com o apoio do Conselho

de Enfermagem Regional e pretende, sobretudo, enaltecer e agradecer o exemplo que dão ao mundo.

 

Tal como referiu o Enfermeiro Sérgio Branco, presidente da SRSul, a celebração do Dia Internacional da Mulher significa um alerta para a existência de modelos de pensamento, ainda enraizados em velhos modelos culturais, que permanecem fonte de discriminação e de exclusão. Por isso, em seu entender, “mais do que mudar as leis, até porque estas nem sequer são o problema, é antes necessário mudar as mentalidades”. E isto, sublinhou, “só se alcança com a Educação, envolvendo a todos: a Escola, as famílias e as instituições.”