O Olhar da Esperança

  • 14-02-2021

Em vez de “complicado, Filipa Caseiro, Enfermeira no Serviço de Pediatria do IPO – Lisboa prefere o adjetivo “desafiante” para caracterizar o seu trabalho junto de crianças com cancro.

 

“São muito especiais e, para nós Enfermeiros, prestar cuidados a esta população é em cada dia um verdadeiro desafio”, contou-nos ao abordar um quotidiano de emoções sempre complicadas. “Ao depararmo-nos com a criança vemos um ser incipiente na arte do viver, a dar os primeiros passos numa existência dependente do outro e, claro, encaramo-la como uma situação especial de crescimento e de desenvolvimento”.

 

Mas, o olhar prolonga-se para além da própria criança. Filipa Caseiro desvenda esta realidade: “Perante o diagnóstico de doença oncológica, a família desorganiza-se, alterando as rotinas e dinâmicas. Por isso, ela necessita de ser acompanhada e assistida”. E assevera: “O nosso foco de cuidados é sempre a díade criança-família”.

 

Todas aquelas alterações advêm, também, do sofrimento e das expectativas que se intensificam sobre a díade. “Na criança, explicou, ‘o peso’ desta doença despoleta mais intensamente expressões de pena e de pesar, o medo do desconhecido e também alguns mitos sobre a doença oncológica que devem ser desmistificados”. Mas, como? – perguntamos. “Usando uma comunicação eficaz e completamente transparente, em que a verdade é sempre o mais importante”, afirmou.

 

Conforme as suas palavras, “o cuidar, neste cenário, deve ser verdadeiramente holístico – social, espiritual, afetivo e cultural”. E, ao que parece, exige do Enfermeiro muita criatividade, além de um suporte emocional muito robusto. “Recorremos sempre que possível ao brincar, utilizando as nossas capacidades técnicas e empáticas”, esclareceu - fazendo parecer simples aquele mundo de tantos contrastes interiores.

 

Cuidar da criança implica compreender a particularidade do olhar dela, inserido no contexto das etapas da infância que está a viver, sempre numa perspetiva holística e no contexto da díade criança-família. Pretende-se, com isso, explicou, chegar às expectativas que vão sendo geradas independentemente da condição existencial. Segundo Filipa Caseiro, “a equipa de Enfermagem, juntamente com os demais membros no grupo interdisciplinar (médicos, nutricionistas, assistentes sociais, educadoras de infância, professores, assistentes espirituais, psicólogas e assistentes operacionais), desenvolve atividades com a criança e a sua família para majorar a manutenção do bem-estar e a máxima qualidade de vida”.

 

Recorde-se que o IPO-Lisboa Francisco Gentil, criado em 1960, é o maior e o mais antigo serviço de oncologia pediátrica do país e uma das unidades de oncologia pediátrica multidisciplinares mais antiga do mundo. Por ano, o Serviço recebe uma média de 190 novos casos de cancro em idade pediátrica e mantém em tratamento, em simultâneo, cerca de 450 crianças (ver fotos gentilmente cedidas pela instituição).

 

“Na equipa interdisciplinar, somos nós, os Enfermeiros, que estamos presentes lado a lado nesta díade durante todo o processo: diagnóstico, tratamento e consequências do mesmo”, explicou  Filipa Caseiro, sublinhando ainda: “Ocupamos um lugar privilegiado na díade para intervir em todas as fases, cultivando uma relação empática e  utilizando toda a nossa formação académica que nos qualifica e capacita na prestação de cuidados ao doente pediátrico oncológico”. E adiantou: “A doença oncológica desafia-nos a ultrapassar obstáculos e mitos com o objetivo de garantir a vida com qualidade, respeitar a dignidade humana e proporcionar uma morte tranquila e digna quando os recursos terapêuticos não são eficientes”.

 

Neste contexto em que a ciência também se mescla no humano, além dos recursos materiais imprescindíveis ao cuidar com segurança e qualidade (infraestruturas, material, equipamento), destaca-se a importância dos recursos humanos. Estes, por vezes, são escassos sabendo-se que ali os doentes são acompanhados em internamento, consulta e hospital de dia. As leucemias e os tumores do sistema nervoso central são as doenças mais frequentes e representam, no seu conjunto, cerca de metade dos casos entrados naquele Centro de Referência para o cancro pediátrico que acolhe crianças e adolescentes das regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Ribatejo, Alentejo, Algarve, Açores, Madeira e também dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).

 

Disse a Enfermeira: “Em pediatria oncológica os recursos humanos são valiosos, mas nem sempre o rácio Enfermeiro-doente é o correto”. E esclareceu: “Nesta população específica os procedimentos têm um timing diferente, pois respeitamos a rotina da díade criança-família e utilizamos estratégias de intervenção que implicam um maior tempo de cuidados prestados”. Filipa Caseiro destacou também a missão importante que desempenham todos os demais profissionais, nomeadamente os psicólogos e assistentes sociais “cujo papel é essencial para minimizar o impacto desta doença”.

 

Para a SRSul, assinalar este Dia Internacional da Criança com Cancro significa, sobretudo, evocar a Esperança e acreditar que a Luz nunca se apaga quando ao lado está Alguém que nunca deixa ninguém sozinho. Florence Nightingale, a percursora da Enfermagem moderna, cujo bicentenário do nascimento se assinalou em 2020, ficou conhecida como a “Dama da Lamparina” por levar Luz aos seus doentes. Numa realidade de pediatria oncológica, onde é impossível ludibriar o sentir, o presidente da SRSul, Enfermeiro Sérgio Branco, diz que neste dia cabe uma saudação muito fraterna a todos os Enfermeiros que no seu cuidar diário, aplicando as mais sofisticadas técnicas de Enfermagem avançada, permanecem uma Luz no olhar destas crianças muito especiais.

 

Porque o contexto é mesmo desafiante, mais do que complicado, também o Enfermeiro Francisco Vaz, vogal do Conselho de Enfermagem Regional (CER), da SRSul, defende: “Na luta contra o cancro na infância, o direito a um acolhimento humanizado, em particular o gesto de amar, o respeito e o acreditar, farão toda a diferença”. E sublinha: “A isto chamamos de Esperança”.