Dia do Transplante: os casos que marcaram três Enfermeiras

  • 20-07-2023

Um transplante que salva a vida, mas que também a muda drasticamente. Aprender a viver com um novo coração é um desafio que vai muito além da questão física. A mental tem uma influência profunda nos doentes, mas também nos enfermeiros que acompanham passo a passo os momentos pós-transplante.

 

Neste Dia do Transplante falámos com três enfermeiras do Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, que contam as suas experiências e como é inevitável criar uma relação de proximidade com os doentes. Alguns casos acabam por marcar as suas carreiras... as suas vidas.

 

Se há algo em comum entre as enfermeiras Paula Silva (49 anos), Lúcia Pires (39) e Fátima Almeida (55) é o gosto pelo que fazem. Nem sempre passam por momentos fáceis. Lidam com a incerteza que um transplante traz a quem dele precisa, lidam com as fases de frustração, quando um doente tem de readaptar a sua forma de viver à situação em que se encontra. Mas também lidam com os momentos de felicidade de quem recebeu uma nova oportunidade. Saber falar, saber ensinar, mas, principalmente, saber estar com essas pessoas faz toda a diferença. Com os doentes e com as famílias.

 

Estas enfermeiras dedicam-se a garantir que todos possam encontrar o seu caminho e serem felizes. Se nem todos os casos terminaram bem e inevitavelmente deixaram as suas marcas, a verdade é que são muitos os bons exemplos. E quando, passados anos, estas enfermeiras continuam a reencontrar algumas das pessoas que foram transplantadas (algumas ainda enquanto crianças) e a ver como estão bem, garantem que faz com que tudo o que passam de mais difícil, valha a pena. "Os casos positivos valem um milhão de vezes", assegura a Enfermeira Paula Silva.

 

Lidar com as crianças e familiares

 

Se todos os casos, independentemente da idade, têm a sua especificidade, quando se fala de crianças há naturalmente um sentimento ainda mais forte. Paula Silva, Enfermeira Especialista em Saúde Infantil e Pediatria, que trabalha na Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Cruz, está há 22 anos - quase toda a sua carreira - a lidar com crianças e as famílias.

 

"Os cuidados que os pais têm são fundamentais para as crianças não terem rejeições porque precisam de muitos cuidados. Os pais levam as coisas aos extremos, mas a verdade é que são casos de grande sucesso. Encaram como uma missão e nós temos de os ajudar. Os pais dão sempre o seu melhor. Eles fazem parte da equipa dentro dos cuidados de saúde", realça a Enfermeira Paula Silva.

 

Acrescenta como às vezes são situações difíceis de gerir, ainda mais quando a criança tem irmãos, por exemplo: "[Os pais] terem de se dividir e de terem de estar quase omnipresentes para tudo, não é fácil. Nós temos de tentar tirar um bocadinho essa carga e ajudá-los para eles não sentirem que estão a falhar de algum dos lados. Passa também por nós esse papel de os ajudar."

 

Apesar da existência de uma psicóloga, a impossibilidade de estar sempre presente faz com que os enfermeiros acabem por ter também um pouco esse papel. Lidar com crianças depende muito da idade, como explica: "Quando são muito pequeninas, não têm a noção que morreu uma pessoa para receberem um coração novo. De certo modo, é mais fácil, têm uma forma de se ambientarem às coisas. São realmente crianças muito resilientes. Conseguem tirar logo o bom de tudo. Têm uma vivacidade, ultrapassam as coisas de maneira diferente, também porque têm esse desconhecimento."

 

A perspectiva muda com a idade: "As crianças mais velhas já conseguem perceber. Elas não falam sobre o ter morrido alguém para as salvar. Vão depois falando e é importante que o façam. Tentamos de alguma forma ir por outras palavras para saber o que estão a sentir. Agora temos a psicológa que as ajuda muito e há uns anos não tínhamos essa ajuda preciosa."

 

Acrescenta que as crianças podem passar pelas mesmas fases que os adultos. Isto é, "têm a fase de euforia porque se estão a sentir bem, depois há às vezes uma fase um bocadinho de revolta, de estarem confinadas no quarto, de não puderem sair. Depois vão-se apercebendo que vão ter limitações nas suas vidas e isso também lhes causa revolta. Mas são fases normais e que a criança tem de verbalizar. Nós como enfermeiros temos de lhes mostrar que há alternativas."

 

São vários os casos que não esquece e conta um que aconteceu há cerca de 15 anos, com uma criança de Viseu, de uma família com poucos recursos económicos.

 

"Ele esteve algum tempo nos cuidados intensivos antes de ser transplantado. Teve um agravamento da sua situação, esteve ventilado e penso que ainda esteve com assistência antes de ser transplantado. Perdeu massa muscular e quase que perdeu o saber andar", começou por explicar a Enfermeira Paula Silva.

 

A mãe nem sempre conseguia estar presente. "Tinha outro filho a precisar de cuidados que, salvo erro, tinha uma paralisia cerebral. Não era um contexto familiar fácil", recorda.

 

A enfermeira frisa a responsabilidade que foi necessário dar a uma criança de apenas 12 anos, após o transplante. "Tivemos que pôr o rapaz a crescer rapidamente. Assumir a responsabilidade de saber da medicação, de saber dos cuidados que tinha de ter, os cuidados de higiene... É um peso tão grande que se tem dar."

 

Sempre que a mãe estava presente, os ensinamentos necessários eram transmitidos. Porém, a criança "teve de fazer toda a recuperação da parte física, do andar, a ter força muscular para se tornar autónomo, toda a carga de ensino de o preparar para ir para casa com um coração novo".

 

Paula Silva não sabe como agora estará esta criança, já bem adulta. Até aos 18 anos ainda foi seguida no hospital e até então estava tudo bem: "É tão satisfatório ver o crescimento delas, o ganhar maturidade."

 

O receio da rejeição e a vontade de saber como será a vida pós-transplante

 

Lúcia Pires é Enfermeira da Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia Cardíaca do Hospital de Santa Cruz. Rapidamente afirma como estar com doentes transplantados é "diferente por toda a componente emocional a que estão sujeitos".

 

Realça que os enfermeiros conversam muito com estes doentes. "Nós começamos logo nos Cuidados Intensivos a preparar a alta destes doentes transplantados. Daí nós temos uma check list para também estarmos a par e à vontade com os ensinos que vamos fazer porque são doentes que têm muita vontade de saber como vai ser a vida deles", começou por explicar.

 

Quais são os maiores receios destes doentes?

 

"No início do transplante o principal risco é a rejeição, portanto, eles têm sempre muito receio, têm dúvidas se podem fazer alguma coisa para evitar esta rejeição. Sabem que a adesão à terapêutica é fundamental, mas têm medo que comendo algo que não é tão aceitável no pós-transplante, bebendo água que não é tão cuidada, têm muito receio de serem eles os causadores de uma possível rejeição."

 

Portanto, a Enfermeira reitera que se tenta minimizar a ansiedade e uma forma de ajudar é dar a conhecer o relato na primeira pessoa de outros transplantados, que são convidados a contar a sua história a quem vai ou já recebeu um transplante de coração. E claro, envolver a família é essencial.

 

Lúcia Pires está há 17 anos nesta área e não hesita em admitir: "É impossível não ter um envolvimento mais pessoal."

Um dos casos que a marcou acabou por ser com um senhor que não só o acompanhou no pós-transplante, mas também antes.

 

"Este senhor tinha sido sujeito a um enfarte fulminante. Colocou assistência ventricular e ficou connosco à espera de um transplante. Portanto nós fizemos todo o pré-transplante com ele, com a família, filho, com a esposa e com a mãe."

 

"Esta parte emocional com ele foi muito de gestão do conflito interior quando soube que iria ser transplantado. Conseguimos fazer todos os ensinos antes, conseguimos falar com a família sobre tudo. É algo que nos cuidados intensivos não estamos muito habituados."

 

E acrescentou: "Foi muito interessante porque criou-se uma relação muito próxima entre todos os enfermeiros e este senhor. Nós passámos a passagem do ano com ele. Em Janeiro ele foi transplantado. Nós ligámos para lá para saber se tinha corrido bem, portanto houve um envolvimento muito grande da equipa."

 

Os laços de amizade que ficam

 

A Enfermeira Coordenadora da Unidade de Transplantação do Hospital de Santa Cruz, Fátima Almeida, também não hesita em confessar: "Emocionalmente é muitas vezes completamente impossível não nos envolvermos, principalmente com a fragilidade emocional do doente."

 

Há cerca de 15 anos que é a responsável da unidade de transplantação cardíaca e considera que pode haver uma formação base para lidar com estes doentes, mas que a maioria acaba por ser adquirida com a experiência.

 

"Eles estão fragilizados e a abordagem às vezes é complicada. Alguns estão revoltados com a situação, outros, por exemplo, foram para uma cirurgia convencional e, posteriormente, acordam transplantados e é um bocadinho complicado de gerir. Mas depois há toda aquela sensação de nova vida e isso envolve muito a parte emocional dos doentes", refere.

 

Um caso marcante? "Existem vários... Acaba-se por criar laços de amizade pela proximidade que há com estes doentes", responde.

 

Explica que se vive uma "fase transitória" no hospital. "Antigamente eram seguidos aqui durante toda a vida após o transplante- Havia sempre uma grande proximidade entre nós e o doente. Actualmente estamos numa fase de mudança, estamos em ligação com a unidade de transplantação de assistência cardíaca avançada que é uma interligação entre a cardiologia e a cirurgia cardíaca. Nós só apanhamos na fase pós-operatória imediata, até ao momento da alta."

 

O caso que conta sobre um adulto de cerca de 30 anos aconteceu há seis anos: "Ele deu entrada para uma cirurgia convencional e as coisas correram mal. Posteriormente teve de ser transplantado. Ficou emocionalmente ficou muito destruído. Quando acordou transplantado ficou com algumas limitações, principalmente na marcha. E nós criámos uma grande ligação, ainda por cima é sobrinho de uma pessoa que conheço."

 

"Criou-se um laço de amizade muito grande. Ainda recentemente veio ao hospital a uma consulta e visitou-me. Telefona para mim quando tem alguma dúvida. Houve uma vez tinha um baptizado e telefonou-me a perguntar o que eu achava, se devia ou não ir. Acaba por haver uma relação de grande proximidade."

 

"Teve de mudar de profissão. Era motorista e ficou com limitações a nível de uma articulação de um pé. Hoje em dia está perfeitamente integrado no seu trabalho. Tem uma qualidade de vida excelente", afirma, salientando que até está a ponderar ser pai.

 

Salienta como "agora não é a mesma coisa" com as mudanças efectuadas. "Eu chego lá para fazer os ensinamentos, mas não conheço as pessoas, elas não me conhecem, é tudo mais distanciado", lamenta.

 

Diz que "não há um comportamento padrão para se lidar com estes doentes" e que "tem muito a ver com a personalidade" de cada um.

 

"Às vezes é super difícil. Tem havido casos que a abordagem dos ensinos é muito difícil porque os doentes não estão minimamente a fim. São donos e senhor do saber, eles sabem tudo. É muito complicado. Eu faço-os sentir muito o peso da responsabilidade. Tantas pessoas precisam de um coração e eles foram os eleitos. Em casos difíceis é muitas vezes a chave para as coisas começarem a funcionarem melhor. No fundo, responsabilizá-los pela dádiva que tiveram", afirma.