Pessoas com direitos

  • 09-12-2020

DIREITOS DO HOMEM E A ENFERMAGEM

Mara de Sousa Freitas

 

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro 1948, comemora este ano os seus 72 anos de vida. A sua proclamação foi o reconhecimento de um horizonte que a todos interpelava: a dignidade humana e o respeito por todos os Homens, sem discriminação, em condições de igualdade, liberdade, justiça e paz.

 

Todo o Homem passou a ter direito à proteção da vida e à promoção do seu melhor bem-estar. A Vida e a dignidade do Homem foram reconhecidos como valores invioláveis. Do mesmo modo, a proteção e a promoção da Vida Humana, do bem-estar, da qualidade de vida e da saúde transformaram-se em planos de ação para as diferentes nações do mundo, e nestas para os agentes políticos e para os seus cidadãos.

 

Como respeitar a vida humana e permitir a liberdade enquanto expressão ética da felicidade entre os povos? Foi um grito de esperança para todos. Foi um repto de benevolência, por uma vida mais humana, por mais vida, por mais felicidade, pela construção de uma solidariedade e solicitude intergeracionais capazes de colocar o Cuidar como o cerne da vulnerabilidade humana e promover a igualdade de direitos, “a perspetiva da ‘vida boa’ com e para outros em instituições justas”(RICOEUR, 1991).

 

Este repto, longe de estar concluído, persiste e instala novas questões, desafios que se impõem e não podem esperar porque todas as vidas são importantes e merecem o nosso respeito. As imagens que nos chegam neste mundo globalizado não podem banalizar o mal, mas sim convocar a nossa atenção, a nossa solicitude, o nosso cuidado.

 

Nesta interpelação, 2020 foi também o ano da Enfermagem, a profissão que tem na sua génese o cuidar, o cuidado ao outro mais frágil, mais vulnerável; a profissão que ao longo da História esteve e se mantém na linha da frente no que à dignidade humana, ao respeito, à promoção do bem-estar e da qualidade de vida dizem respeito.

 

No momento ora vivido - de pandemia global -, a Enfermagem e os Enfermeiros (como também os restantes profissionais da equipa de cuidados de saúde) têm sido e continuarão a ser nucleares para a promoção dos Direitos do Homem. Conforme o Conselho Internacional dos Enfermeiros reconhece, os Direitos do Homem são correlativos e irrepartíveis, e quando estes são afetados/violados a saúde e o bem-estar das pessoas também podem ser prejudicados.

 

O respeito e a promoção dos Direitos do Homem é responsabilidade de todos e de cada um. Contudo, essa responsabilidade pode ser tanto maior quanto o dever atribuído pelo exercício de funções próprias, adstritas a uma profissão, como é o caso da Enfermagem.

 

O Enfermeiro está vinculado - ética e deontologicamente - à promoção ativa e à salvaguarda dos Direitos do Homem. Ser Enfermeiro (profissional de saúde) é ser um agente ativo e permanente, quer para a defesa e promoção dos Direitos Humanos, quer na Educação para uma Cidadania responsável e capacitação dos cidadãos para reconhecer e proteger-se contra qualquer forma de abuso ou violação. 

 

Acolher a pessoa e a sua família/pessoas significativas, conhecer a sua narrativa, compreender a semiologia, a sua representação e impacto, identificar os factos, conhecer os valores e princípios e determinar medidas de intervenção efetivas, autónomas e interdependentes, constitui o cerne da intervenção do Enfermeiro. Noutros termos, a intervenção do enfermeiro abrange a expressão humana de cada processo fisiopatológico ou de cada processo social que afeta a pessoa e a sua família, logo acolhe os Direitos do Homem e prescreve o cuidado total, as respostas complexas e integradas, numa equipa de cuidados e numa rede de apoio que sustenta e capacita.

 

A disponibilidade e o acesso aos cuidados, nos diferentes níveis de intervenção em saúde, pelo enfermeiro, individualmente e como membro de uma equipa, são um instrumento incontornável na avaliação da saúde, apreciação da pessoa e do seu meio social/familiar e ambiental, deteção precoce de situações de violação de direitos, assim como para a sinalização de situações de potencial risco e encaminhamento institucional.

 

As intervenções do enfermeiro visam responder às necessidades específicas da pessoa, à promoção da saúde, à prevenção de complicações, à promoção do bem-estar e do autocuidado, à gestão e reajustamento após os eventos de doença, incapacidade ou violação de direitos.

 

Assim, o Enfermeiro - na prossecução da sua missão e pela relação de cuidado que funda, pela confiança sedimentada em cada gesto de atenção e singularidade, pelo respeito que devolve em cada presença, em cada palavra de comunicação, pelo conhecimento e sabedoria prática adquiridos e pela densidade humana de cada partilha - é a demonstração do despertar e do sensibilizar para a Declaração dos Direitos do Homem.

 

Ser testemunho de respeito, pela forma como transformamos o conhecimento em cuidado, é, diria, uma das melhores e maiores provas de defesa e promoção dos Direitos do Homem.

 

Cuidar do outro é acolhê-lo, respeitá-lo, dar-lhe paz e quietude, é ser capaz de restituir, a cada momento a parte do humano que possa ter-se perdido; é saber otimizar o conhecimento e dar-lhe um sentido; é reconhecer em cada outro, cada um, e em cada um, cada outro; é incluir a dignidade humana e os direitos humanos como parte inalienável do sentido da vida; é colocar o outro em primeiro lugar numa ética de cuidado, de respeito e, sim, de compaixão e amor.

 

Permitam-me, last but not least, neste dia que recorda os Direitos do Homem, apenas uma palavra de gratidão e reconhecimento a todos os colegas e demais profissionais de saúde que têm colocado o cuidar como cerne da vulnerabilidade, que têm salvo vidas, acompanhado como nunca antes visto os processos de doença - tantas vezes com elevados riscos -, que têm olhado e acompanhado o processo do morrer em número e intensidades nunca antes experimentados;  que têm proporcionado despedidas e vivido situações tão complexas e, ainda assim, são capazes de sorrir e continuar.

 

Que este dia seja também o recordar que todos os profissionais de saúde são seres humanos, com Direitos e merecedores, hoje mais do que nunca, do nosso respeito, cuidado e zelo. Todos temos um importante papel a desempenhar para continuar a proclamar, a salvaguardar e a promover, mas sobretudo a viver os Direitos Humanos.

 

Lisboa, 10 de dezembro de 2020