A poesia e a enfermagem de Alberto Pereira

  • 21-03-2024

Conheça Alberto Pereira. Alguém que descobriu a literatura, viu na poesia a sua forma de estar e até, em certo ponto, a sua forma de ser. Mas sem nunca descurar a enfermagem, aquela outra forma de arte que é a do cuidar, não se preocupando somente com a doença ou com a dor, mas também mostrando como a poesia pode ter o seu lugar no apoio a quem está numa fase vulnerável.


Neste Dia Mundial da Poesia, rapidamente Alberto leva-nos para o que, à primeira vista, parece ser o seu mundo, mas que vamos percebendo que é o mundo de todos, explorado pela sua forma de viver, através das suas metáforas fortes, por vezes obscuras, que "obrigam" a uma reflexão pessoal de quem as lê. Criativo por natureza, a experiência da sua vida está nos seus livros. Inevitavelmente, a enfermagem também influenciou muitos dos seus versos.


"Sempre gostei de explorar a criatividade, a loucura, no bom sentido, de forma a fugir da rotina", conta. O primeiro livro data de 2008: O áspero hálito do amanhã. Mas para chegar aqui houve vivências que o marcaram e que vai revelando na sua escrita.


Recorda como cresceu num "bairro de lata" em Lisboa: "Não tinha água canalizada, a minha casa era de madeira, cheguei a ter uma parede de papelão. A primeira poesia que escrevi tinha muitas menções a tabernas, a bairros de lata, a violência doméstica, que me foi acompanhando [no bairro]."


Entrou como voluntário na marinha (onde esteve 15 anos) e, no início da década de 90 do século passado, agarrou a oportunidade de tirar o curso de enfermagem. Foi na marinha que começou o seu contacto com os livros e surgiram as primeiras frases escritas.


Foi a cuidar de uma doente no hospital que foi desafiado por esta, tradutora de profissão, a escrever um romance. Nos 11 meses seguintes dedicou-se a essa missão. Nenhuma editora o publicou, mas Alberto foi trilhando o seu caminho. Através de um médico, conheceu o filho deste que tinha uma escola de escrita criativa. Ao romance faltava técnica, a poesia agradou mais…


Mergulhou por completo na poesia, descobrindo mais e mais poetas e escritores que o influenciam. "Não sou escritor sem o que os outros escreveram", salienta, considerando essencial ler e ler muito para que as obras que depois escreverá ganhem robustez.

 

Vivência e criatividade


Alberto não mais parou. Já venceu prémios literários e os seus livros já foram traduzidos noutras línguas. Já lá vão 12, um deles publicado no… espaço!


Durante a pandemia, aproveitou a iniciativa da Universal Poem para escrever um livro com 52 aforismos em português e espanhol, transformado depois em código binário e através de uma onda de rádio enviado para a nebulosa Saco de Carvão, a 600 anos-luz da Terra.


É apenas um dos exemplos dos muitos momentos plenos de criatividade na vida de Alberto Pereira: "Faz-me impressão as pessoas não tentarem tornar a vida em algo onírico, mas com os pés assentes na terra. A rotina cerca todas as pessoas, é inevitável, mas pode-se criar um mundo próprio nessa rotina. Às vezes, gosto de transformar coisas que parecem banais, em coisas espetaculares."


Recuando aos primeiros passos na poesia, foi como enfermeiro que conheceu João Aguardela, vocalista dos Sitiados, que morreu em 2009. O músico inspirou-o a escrever o seu segundo livro e ainda um de contos em que retratou a rotina de Aguardela no meio hospitalar, sendo outra parte ficção.


Porém, foi ao terceiro que se viu como poeta. "Considerava-me um 'escrevinhador'. Só me considerei poeta após o livro Poemas com Alzheimer, que nada tem a ver com a doença. Foi a forma de criar um hospício fictício, onde eu me sentia bem e esquecia a rotina e as pessoas que estão completamente embrenhadas nessa rotina", refere.

 

A influência da enfermagem


"A enfermagem ajudou-me num parâmetro: a lidar com a dor humana, com os profissionais de enfermagem, a observar a sua postura, das famílias, de saber controlar determinado tipo de emoções e ir cada vez mais fundo na interioridade humana. Os meus poemas exploram muito a dor e essa interioridade."


Ecocardiodrama, publicado em 2022, é um exemplo dessa observação, baseado no que viveu com a sua mãe, na luta contra um cancro da mama. O livro foi reescrito porque, não satisfeito com as primeiras versões, optou por contar através do olhar de um médico, não só a experiência de estar ao lado da mãe até à sua morte, mas também como viu os colegas neste processo.


"Nós com o tempo não ficamos insensíveis, mas descuramos determinado tipo de pormenores que as pessoas às vezes têm necessidade de expressar. O próprio sistema, as condições, o estado, que as instituições nos dão para trabalhar são muito difíceis. Por vezes, queremos estabelecer empatia com os doentes e não conseguimos", explica.


Não há em Alberto Pereira o lado enfermeiro e o lado poeta. Quando está no Hospital de Egas Moniz os seus dois gostos fundem-se, falando sobre a literatura com quem cuida: "Gosto de ser enfermeiro. Os doentes não querem estar sempre a falar da doença, querem ouvir outras histórias. O que se passa é que às vezes não há tempo. Os enfermeiros estão sobrecarregados, mas é importante falar com os doentes de outras temáticas."


E reforça: "A literatura permite falar sem constrangimentos, sem receios, com qualquer pessoa."

 

As três linhas da sua poesia


Diz seguir três linhas. A obscuridade: "Devemos enfrentar essa obscuridade. Se eu fugir a isso, as coisas não ficam resolvidas."


Anitya (impermanência, em sânscrito) é a palavra mais importante para si. "Impermanência, é a coisa mais permanente da vida. Hoje estou no júbilo, amanhã no aluimento, depois novamente no júbilo. Impermanência não pertence a nenhuma doutrina, aplica-se a tudo na vida. Ao amor, à religião, a tudo. Eu tive os meus grandes períodos e também já dei grandes quedas. As grandes lições da vida são aprendidas com essas quedas."


Silêncio: "Acho que é o silêncio que traz muitas vezes a clarividência."


"No fundo, a minha obra gira à volta de uma pergunta que é: quanto tempo demora o céu a levar um tiro na cabeça. Entra neste âmbito a impermanência, quanto tempo demora tudo a desmoronar-se. Tudo acaba", diz.


"O que pretendo com a minha poesia é que cada um consiga dialogar com o batimento cardíaco das suas tempestades. Que não fuja aos seus problemas. Às vezes referem que a minha poesia é muito dura. É difícil fugir a alguma reflexão e é isso que quero."

 

E o romance?


Quando o escreveu, correu uma maratona e levou o livro com ele. Era uma distância longa, pelo que quis cortar a meta segurando a longa obra.
Estará para breve a publicação. Mais um ou dois anos, talvez, e finalmente se poderá ler um livro de ficção de Alberto Pereira, como prefere chamar.


Para já, "há que deixar este livro viajar", ou seja, Tarkovsky, a sua mais recente obra.