Artigo de opinião da Bastonária da OE no jornal Público

Agora todos querem saber o que pensam os Enfermeiros!

  • 16-09-2023

 

 Agora todos querem saber o que pensam os enfermeiros!

 

Quem é que quer saber o que pensam os enfermeiros? A pergunta pode parecer patética vista com os olhos de hoje, mas a verdade é que enchia os corredores do poder quando fui eleita bastonária há oito anos. Ninguém queria saber o que pensavam os enfermeiros, se tinham contributos para as políticas públicas de saúde, se pensavam a organização dos serviços de outra forma ou, ainda mais simples, se tinham alguma coisa a dizer sobre as suas condições de trabalho.

 

Das chefias diretas ao poder político, passando pelos conselhos de administração, reinava o culto do desprezo face à nossa classe profissional. Isso acabou. Muitos foram aqueles que se incomodaram com o jeito, o estilo, o tom, a voz, as denúncias e os confrontos. Para muitos fui quase sempre excessiva, demasiado acutilante, pouco institucional. Não fui a bastonária que os poderes queriam, mas tentei ser sempre a mulher que os enfermeiros precisavam neste tempo. Acredito que as pessoas são elas e as suas circunstâncias, assim como os cargos que ocupamos.

 

A casa que encontrei precisava de um vendaval. Estava fechada há muitos anos, cinzenta, cheia de pó e refém de certas lógicas partidárias que colocavam interesses particulares à frente das reais necessidades da enfermagem. Foi preciso abrir a janela para provocar uma tempestade útil. Foi preciso perder o medo de ir à varanda gritar, agitar, incomodar, mas não só. Ao mesmo tempo, foi necessário construir, acrescentar, mostrar ao País que somos um dos pilares do sistema de Saúde e, na mesa do poder, deixar propostas claras para as mudanças que queríamos ver concretizadas na profissão.

 

O trabalho está à vista, até para aqueles que continuam a falar do estilo sem perceberem que foi a fatura que decidimos pagar para que os enfermeiros tivessem voz. Estou certa de que se tivéssemos escolhido o caminho que queriam, mais tranquilo e institucional, a enfermagem continuaria hoje subjugada, submissa e remetida ao desprezo. A verdade é que para a história fica uma autêntica revolução na Ordem e na forma como a sociedade se relaciona com os enfermeiros. Hoje, sem hesitações, toda a gente consegue identificar o enfermeiro da sua vida, compreender a centralidade das suas funções, reconhecer o seu esforço, solidarizar-se com as difíceis condições de trabalho e apoiar, como não acontecia no passado, as suas formas de luta. A enfermagem deixou a escuridão e o reino do silêncio. Tem luz, voz, palco, visibilidade. As opiniões dos enfermeiros contam, basta ver todos os contributos que a Ordem deu para alterações legislativas e a forma como foram valorizados. Hoje, como seria difícil de imaginar há oito anos, ninguém discute possíveis reformas ou alterações particulares no destino das políticas de Saúde sem querer saber o que pensam os enfermeiros. Para aqueles que nos acusaram de “popularizar” o cargo, aqui está a maior prova de credibilidade. Alguma vez imaginaram que Enfermeiro seria Palavra do Ano? Mas foi, em 2018.

 

O país conhece melhor os seus enfermeiros e as suas vidas. Portugal sabe hoje, graças ao trabalho da Ordem, que quase dois terços dos enfermeiros já pensaram em mudar de profissão, que são dos mais mal pagos da OCDE e que os números da emigração bateram todos os recordes. Mas a sociedade sabe também, graças ao trabalho da Ordem no terreno, que faltam enfermeiros nos serviços, que as dotações seguras não são cumpridas, que há portugueses a morrer sem dignidade em lugares escuros a que chamam lares.

 

 Estes oito anos foram feitos de trabalho para fora, mas também para dentro da profissão. Os enfermeiros sabem bem o que significa termos sido capazes de criar mais seis novas áreas de especialidade e dezenas de competências acrescidas. Não é apenas sinónimo de muito trabalho, mas significa, sobretudo, colocar a enfermagem no patamar de excelência que merece.

Encontrámos uma Ordem profissional onde a formação era praticamente inexistente, um vazio incompreensível, mas hoje multiplicam-se as formações, a grande maioria gratuitas e geridas com uma plataforma própria.

 

Encontrámos uma Ordem repleta de burocracias, pesada e que não conseguia dar resposta às solicitações dos enfermeiros, mas deixamos uma casa com um balcão único onde é possível resolver todos os problemas à distância de um click ou de um telefonema para um call center que funciona.

 

Encontrámos uma Ordem onde os enfermeiros quase que pagavam por existir, mas deixamos uma casa onde os membros passaram a pagar menos uma quota por ano e onde as declarações e fotocópias de documentos passaram a ser gratuitas, assim como os congressos e as convenções. A isto junta-se a criação do programa “Mais Enfermeiro, Mais Benefício”, que disponibiliza mais de mil descontos e vantagens numa rede de serviços, um novo site que permite localizar ao minuto os enfermeiros portugueses no mundo (através de um mapa interativo).

 

Encontrámos uma Ordem de costas voltadas para o dia-a-dia dos enfermeiros, mas deixamos uma casa onde foi criado o gabinete de mediação de conflitos, o portal das denúncias, o repositório científico, vários prémios de investigação, os orçamentos participativos, as Assembleias Gerais descentralizadas, enfim, coisas que o tempo vai ensinar a valorizar.

 

E com isto passaram oito anos. Deixo o lugar de Bastonária com a noção de dever cumprido. Prometemos devolver a Ordem aos seus membros e dar voz aos enfermeiros. Cumprimos. O caminho agora só pode ser para a frente, até porque o regresso ao passado significaria despertar aquela pergunta que enterrámos todos: “Quem é que quer saber o que pensam os enfermeiros?”. 

 

 

Ana Rita Cavaco

Bastonária da Ordem dos Enfermeiros

 

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