É assim que Vasco Neves está a tratar dos pés a sem-abrigo

  • 27-12-2018

É hora de almoço na Casa Mãe Clara. Dezenas de pessoas, a maioria sem-abrigo, acorrem à instituição - “obra social” da Casa de Saúde da Boavista - para receber o almoço que a equipa chefiada pela irmã Regina de Sousa prepara diariamente. Mas, ali ao lado, num pequeno gabinete, também vão tratar da saúde dos pés, uma vez por semana. Não com qualquer intenção cosmética, mas simplesmente para cuidar, higienizar e desinfectar os pés massacrados pela vida na rua. 

 

É esse o trabalho que está a ser desenvolvido pelo enfermeiro Vasco Neves há vários meses e que, recorde-se, foi um dos projectos contemplados pelo Orçamento Participativo da Secção Regional do Norte da Ordem dos Enfermeiros em 2018. O projecto tem uma dupla intenção: cuidar e investigar. A componente de investigação, assume, “tem objetivos específicos e determinados”, que passam por reunir uma amostra de 50 indivíduos sem-abrigo e identificar a prevalência de onicomicoses, lesões, feridas “e tudo o que for patologia do pé” naquele grupo específico. 

 

A tese que está a preparar encontrou aqui o terreno ideal para se desenvolver. “Tenho a possibilidade de trabalhar com um grupo de pessoas de alto risco, que caminha quilómetros para vir aqui almoçar”. Gente “vulnerável”, “marginalizada” e que “ninguém está muito interessado em investigar”. Segundo Vasco Neves, estas pessoas “têm vergonha de ter assim os pés e têm preocupação”, desmentido quem pense que “por serem sem-abrigo, não querem saber dos pés”. “A questão é perceber o que é impede de terem esses cuidados. Por exemplo, para tomar banho no Campo 24 de Agosto precisam de pagar. O resultado é que muitos não tomam banho há três meses”, descreve-nos.

 

Como refere o colega, “nem parece que estamos no Porto, em pleno século XXI”. Mas a realidade é esta e, para Vasco Neves, está bem mais próxima de nós do que aquilo que parece: “há um denominador comum nestas pessoas, que é a falta de suporte familiar. Se lhe juntarmos uma doença crónica, alguma dependência ou falta de emprego, é muito fácil cair numa situação destas”. 

 

Inspirado por Dorothea Orem, o enfermeiro do Hospital das Forças Armadas assume que se identifica com a responsabilidade social da profissão. “Os enfermeiros sempre demonstraram uma grande preocupação com os grupos de pessoas vulneráveis”, sublinha, lembrando que o projeto representa “muitas horas de trabalho pro bono” e a conjugação de vários apoios, entre os quais o imprescindível contributo da Casa Mãe Clara. Já o apoio obtido pelo Orçamento Participativo da Ordem dos Enfermeiros, diz-nos, “foi muito importante” porque “permitiu oferecer um par de sapatos a cada participante”. 

 

Vasco Neves acredita que este trabalho tem vida para além do estudo de investigação que está a desenvolver. “Mas isso exige recursos”, admite. Por enquanto, ainda vão ser uns bons meses de trabalho até chegar à meia centena de pessoas tratadas.

RPR