Dois enfermeiros, duas filhas e um teste Covid positivo

  • 17-04-2020

Tudo temos feito para dar voz aos enfermeiros. Escutamos os seus anseios e servimos de caixa de ressonância às suas preocupações. Mas, nesta altura de confinamento e emoções, muitas vezes, só o escrever salva.

Partilhamos uma carta imbuida da alma de uma colega que, não querendo ser identificada, quis contar ao mundo os seus dias.

 

Dois enfermeiros, duas filhas e um teste Covid positivo 

 

Final do período letivo, cerca de 12 horas diárias de trabalho, cuidar das filhas, da casa, dos nossos e preparar o dia seguinte... E dias e dias assim, sem folgas e no dia da suposta folga foi necessário continuar a trabalhar... Por todos! 

 

E explicar às duas filhas menores que o papá e a mamã estão a ajudar Portugal, estão a cuidar de todos... 

E explicar-lhes que as amamos muito, mas não pode haver beijinhos nem abracinhos... 

E que precisamos de continuar a trabalhar... E que elas devem ter muito orgulho no que os pais estão a fazer... Mas elas não deixam de ser menores e, mm que tenham orgulho dizem que têm saudades de beijinhos e abracinhos do papá e da mamã... Que têm de se organizar para continuar a trabalhar.

 

Numa equipa de trabalho, um caso positivo de CoVid... E tiram-nos o chão.. Porque o pai e a mãe precisam de continuar a trabalhar... Por todos! Voluntariamente decide-se continuar a trabalhar... Por todos! 

 

Mas... E nós?!?! Parou tudo! Pára a razão, não para a emoção e a sensatez dos avós diz: tragam as meninas para cá... 

 

De noite, sem se puderem despedir da mãe que poderia estar infetada, fazer malas e, por um período estimado de 15 dias, rumam a casa dos avós, sem um beijinho ou um abraço... Como se de uma acção de despejo se tratasse... Com explicações mas sem hipótese de opiniões ou emoções... 

 

E continuamos a trabalhar os mesmos números de horas e a ver as nossas filhas e os nossos pais por videochamada, quando em casa, cada um numa divisão, privados de contacto. E a emoção obriga-nos a sair dos grupos de pais porque não conseguimos estar perto das nossas filhas nem desenvolver atividades com elas, como a maior parte dos pais. Esta foi a primeira vez que ficaram a dormir em casa dos avós... Sem data de regresso... 

 

E surgem outros casos positivos e começamos a perceber que era incomportável para os avós (pouco jovens e com doenças crónicas) e para as nossas filhas interromper tudo por tempo indeterminado... 

 

E planeia-se o regresso das filhas e a despedida dos avós, com uma dor gigante do não sei quanto tempo não vou poder ter contacto convosco à mistura, e as lágrimas e as saudades... 

 

E as nossas filhas voltam para casa. E temos de continuar a cuidar de todos... e prioritariamente das nossas filhas. 

 

Problema?! Início de sintomas da mãe, teste COVID positivo... E tiram-nos o chão... Estivemos a cuidar de todos, mas não conseguimos cuidar de nós... 

 

Os sintomas, o medo, a dúvida... Partilhar a mesma casa que o marido e as filhas e... Não ter contacto?!... 

 

E não querer que as filhas, nem os pais,  nem os amigos se preocupem connosco e não lhes dizer que o teste foi positivo. E explicar que ninguém lá em casa pode entrar no quarto da mamã, nem na casa de banho, nem tocar nas coisas que a mamã toca porque ela pode ter vírus... E fazer de conta que está tudo bem... Quando não está!!! 

 

Nada estava bem! Nem a parte física, nem a emocional, nem o habitar com as pessoas que amamos, o medo de lhes ter transmitido a doença, a dúvida do aparecimento de sintomas, os dias a teimar não passar, as notícias más em todos os sítios, partilhar o mesmo teto e estarmos presos em nós... Mas na nossa casa também... Não podíamos sair de casa!! 

 

E são assim dias e dias que teimam em não passar. Questões, 1000 questões, de duas crianças inteligentes que se mantiveram sempre incrivelmente felizes, ativas e bem dispostas, cheias de reclamações de falta de tempo dos pais estarem com elas. 

 

No meio de toda esta aprendizagem criamos um patamar de ouro para os amigos (quem nos trazia as compras a casa e quem se preocupava diariamente connosco), percebemos que as nossas filhas "pagam caro" serem filhas de enfermeiros e que a avozinha e o avozinho são super heróis. 

 

Aprendemos muito sobre liderança (e falta dela - enfermeira positiva, duas filhas menores em casa e uma recusa de teletrabalho para o pai), e conseguimos abrilhantar o cuidar. 

 

Tudo isto nos transformou e nos tornará diferentes...e nos fará ver as pessoas e as circunstâncias de forma diferente... 

 

Depois das dificuldades, damos ainda mais valor a tudo! Sabemos que nos esperam dias extraordinários! Temos imenso orgulho em ser Enfermeiros! 

 

RPR