Entrevista “A ação do(a) enfermeiro(a) especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica junto da pessoa LGBTI+”

Dia:  28-06-2023

 

A Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (MCEESMP) da Ordem dos Enfermeiros (OE) considerou relevante refletir acerca da ação do(a) enfermeiro(a) especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (ESMP) no que concerne à promoção da saúde mental das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo, frequentemente designadas pelo acrónimo LGBTI+. Nesse sentido, decidiu realizar uma entrevista ao Sr. Enfermeiro Alexandre Santos de Oliveira (ASO), enfermeiro especialista em ESMP, que é atualmente o coordenador da Estratégia de Saúde para as Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexo da Direção-Geral da Saúde (DGS).

 

A entrevista visou conhecer a sua perspetiva acerca do tema, de forma sumária, sustentada na sua experiência académica, formativa e profissional, na evidência científica (circunscrita às ciências de Enfermagem), e sob o prisma das boas práticas clínicas, particularmente da intervenção dos(as) enfermeiros(as) especialistas em ESMP na resposta às necessidades de saúde mais específicas das pessoas LGBTI+.

 

MCEESMP – Qual é a sua opinião acerca da prática de cuidados de Enfermagem afirmativos?

ASO– As competências específicas das/os enfermeiros/os especialistas em ESMP devem estar intrinsecamente suportadas numa prática de cuidados afirmativos, que se podem ancorar na teoria de médio alcance de Enfermagem "Rivera's Gender Affirming Nursing Care (GANC) Model", independentemente da orientação sexual, identidade e expressão de género, e caraterísticas sexuais da pessoa/cliente. As/os enfermeiros/os especialistas em ESMP, ao incorporarem na sua prática este referencial teórico assente na equidade e respeito pela diversidade de género, têm como finalidade maximizar os resultados de Enfermagem face à avaliação inicial efetuada, aos diagnósticos de Enfermagem identificados e aos cuidados afirmativos prestados de âmbito psicoterapêutico, socioterapêutico, psicossocial ou psicoeducacional (de acordo com as necessidades da pessoa e seu consentimento), através da relação terapêutica estabelecida.

Neste sentido, as/os enfermeiros/os especialistas em ESMP desempenham um papel fundamental junto das pessoas LGBTI+ ao longo do ciclo vital, das suas famílias e/ou da(s) pessoa(s) significativa(s), tanto no que diz respeito a problemas de saúde (que são iguais aos da restante população) como a questões referentes às especificidades LGBTI+, numa vertente interseccional e com vista ao seu empoderamento. Portanto, as/os enfermeiros/os especialistas em ESMP, face às pessoas LGBTI+ que enfrentam desafios e desigualdades em matéria de saúde mental e saúde sexual, podem: prestar apoio à pessoa na exploração da sua identidade e expressão de género; facilitar o processo de afirmação; e implementar programas de promoção da saúde mental e prevenção do bullying homofóbico e transfóbico em contexto escolar.

MCEESMP – As pessoas LGBTI+ são frequentemente alvo de estigma e discriminação por parte da sociedade. O que podemos fazer, enquanto enfermeiros especialistas em ESMP, quanto a essa matéria?

ASO– Para mim é primordial a autodesconstrução do preconceito, estigma e discriminação contra as pessoas LGBTI+ por todas/os as/os enfermeiras/os. Esta postura afirmativa pode influenciar positivamente a decisão das pessoas LGBTI+ em aceder a cuidados de Enfermagem e, subsequentemente, reconhecer a visibilidade das pessoas LGBTI+ nos cuidados de Enfermagem. Para tal, as/os enfermeiras/os devem ter consciência das especificidades de saúde das pessoas LGBTI+ de modo a cativar, manter e/ou melhorar a sua confiança nos cuidados de Enfermagem, nas instituições de saúde, e no Sistema de Saúde.

Enfatizo que é fundamental o processo de autoconhecimento e desenvolvimento pessoal e profissional das/os enfermeiros/os especialistas em ESMP, pela introspeção acerca das suas crenças, atitudes e valores em relação às pessoas LGBTI+. Esta consciência de si possibilita: assegurar uma prestação de cuidados de saúde mental e sexual de excelência; desenvolver caraterísticas de Enfermagem promotoras de afirmatividade em razão da orientação sexual, identidade e expressão de género, e caraterísticas sexuais (como por exemplo, aceitação, compaixão, confiança, humildade, recetividade, inclusão); e, em última instância, eliminar as desigualdades de saúde relacionadas com as pessoas LGBTI+.

 

MCEESMP – Considera que a formação acerca da saúde das pessoas LGBTI+ é pertinente para as/os enfermeiros/os especialistas em ESMP?

ASO– A formação sobre a saúde das pessoas LGBTI+ é pertinente para todos os profissionais, pois é uma medida que contribui para a visibilidade das pessoas LGBTI+ no domínio da saúde, podendo otimizar a acessibilidade e o acolhimento dessas pessoas nos serviços de saúde e, inversamente, minimizar as disparidades em saúde. A melhoria do conhecimento científico e técnico das/os profissionais de saúde para prestar cuidados a essas pessoas é absolutamente basilar.

No que concerne às/aos enfermeiros/os especialistas em ESMP, devido às necessidades próprias das pessoas LGBTI+, identificadas nos resultados de vários estudos como vulnerabilidades em saúde, torna-se fulcral que o programa formativo dos cursos de Mestrado em ESMP englobe a saúde mental e sexual das pessoas LGBTI+, pois a saúde mental e a saúde sexual estão inextricavelmente interligadas, porém, têm aspetos únicos. Apesar desta lacuna atual nos conhecimentos especializados, as/os enfermeiros/os especialistas em ESMP têm uma vasta experiência na prestação de cuidados a uma população altamente estigmatizada com experiência vivida em saúde/doença mental. Assim, as/os enfermeiras/os especialistas em ESMP estão numa posição privilegiada para aplicar os conhecimentos e as competências que já exercem para dar resposta às necessidades de saúde mental e sexual mais particulares das pessoas LGBTI+, tal como espelhado no Regulamento de Competências Específicas do Enfermeiro Especialista em ESMP e, consequentemente, segundo os padrões de qualidade dos cuidados de Enfermagem especializados em ESMP. Acrescento que a formação avançada em Sexologia por parte das/os enfermeiros/os especialistas em ESMP também é relevante, uma vez que possibilita o desenvolvimento de competências de Enfermagem adicionais em termos de apreciação clínica, diagnóstica e intervenção cientificamente fundamentada com o objetivo de potenciar os mais elevados índices de saúde mental e sexual das pessoas LGBTI+.

 

 

MCEESMP – Para além da formação dos discentes em ESMP, pode salientar algumas recomendações existentes relativamente à saúde das pessoas LGBTI+?

ASO– Com o objetivo de garantir a melhor prática de Enfermagem, saliento as seguintes recomendações: a comunicação sem assunções, através de uma relação terapêutica centrada na pessoa, isenta de cisheteronormatividade e de documentação/registos inclusivos; a promoção de um ambiente ou espaço seguro e acolhedor nas instituições de saúde e nas instituições de educação/ensino, onde as pessoas se sintam aceites tal como são, por intermédio de uma abordagem multimodal; e a participação em formação contínua culturalmente competente sobre a temática em questão.

 

MCEESMP – Quais os principais desafios para o futuro da ESMP relativamente à saúde das pessoas LGBTI+?

ASO– Os principais desafios podem ser ao nível: do ensino/educação, em termos de definição do programa formativo no curso de Mestrado e de uma ampla disponibilidade de cursos de formação avançada em Sexologia com intervenções concebidas para garantir as melhores práticas de Enfermagem; da investigação, desenvolvendo mais estudos sobre a intervenção das/os enfermeiros/os especialistas em ESMP junto das pessoas LGBTI+ e do seu impacto na melhoria da qualidade de vida dessas pessoas no domínio da saúde (incluindo uma compreensão mais pormenorizada das vulnerabilidades das pessoas LGBTI+); da prática clínica, por via da implementação de orientações de boas práticas profissionais e/ou declarações de posição, com base na evidência científica, bem como por uma maior inclusão das/os enfermeiros/os especialistas em ESMP na equipa transdisciplinar de Sexologia; e da comunicação, investindo na gestão operativa e estratégica em marketing, publicidade e relações públicas sobre o conteúdo funcional das/os enfermeiros/os especialistas em ESMP.

 

Muito obrigado por este momento de partilha e reflexão, pois certamente ajudará a elucidar todos(as) os(as) enfermeiros(as), e muito particularmente os(as) especialistas em ESMP, sobre a sua visão atual e futura quanto a esta matéria. Parece clara a necessidade de dar primazia à prestação de cuidados de Enfermagem afirmativos a todas as pessoas, bem como a formalização do conhecimento disciplinar de Enfermagem acerca das necessidades de saúde mental e sexual específicas das pessoas LGBTI+.