Dia Nacional da Saúde Sexual

Dia:  04-09-2022

 

Comemora-se no dia 4 de setembro, o Dia Nacional da Saúde Sexual, efeméride instituída em Portugal em 2021 por via da Resolução n.º 187/2021 da Assembleia da República. Considerando que existe uma estreita ligação entre as questões ligadas à sexualidade e a saúde mental, a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (MCEESMP) da Ordem dos Enfermeiros (OE) decidiu assinalar a data com uma entrevista ao Sr. Enfermeiro Hélder Lourenço (HL), enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, sexólogo clínico e terapeuta sexual pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, e cofundador da consulta de Sexologia Clínica do Centro Hospitalar Tondela-Viseu, EPE.

                                                    

MCEESMP – Relativamente ao conceito de “sexualidade”, qual é o seu entendimento acerca do mesmo? E dentro da sexualidade, como definiria a “saúde sexual”, que hoje se comemora?

HL – A resposta a essa questão não é simples. Freud observava a sexualidade como uma força psicológica e biológica fundamental para a estruturação da personalidade, ou seja, o conceito de sexualidade assumia-se mais como um processo com que o ser humano se estrutura, organiza e comunica. A temática da sexualidade aparece como um dos principais veículos para a construção social do sujeito moderno, tendo-se constituído a partir do século XVIII como um domínio desvinculado, claro e gradualmente, de um universo simbólico mais abrangente que incluía os fenómenos da sensibilidade e da sensualidade. Ela inspira a arte, a cultura, a política, para além de ser organizadora das comunidades humanas porque é geradora de famílias. É igualmente através da sexualidade que a espécie humana estabelece os seus vínculos afetivos, tanto de amor como de ódio, sendo que a construção histórica deste conceito girou em torno de três aspetos fundamentais: a perfetibilidade, a preeminência da experiência, e o fisicalismo.

A Organização Mundial de Saúde define-a como “uma energia que nos motiva a procurar o amor, contacto, ternura e intimidade, que se integra no modo como nos sentimos, movemos, tocamos e somos tocados, é ser-se sensual e, ao mesmo tempo, sexual; ela influência pensamentos, sentimentos, ações e interações e, por isso, influência também a nossa saúde biopsicossocial”. A sexualidade é uma expressão física e emocional poderosa, estruturante da psique humana e da organização social, e é igualmente através da sexualidade que passa toda uma experiência da pessoa e a autoconsciência da mesma, já que esta percebe, sente e pensa a realidade como homem ou como mulher. Estas considerações sobre a sexualidade humana são essenciais para se conseguir definir, entender ou operacionalizar a saúde sexual, que é definida pela Organização Mundial de Saúde como “um estado de bem-estar físico, mental e social em relação à sexualidade. Exige uma abordagem positiva e de respeito pela sexualidade e relações sexuais, bem como a possibilidade de ter experiências sexuais agradáveis e seguras, livres de coerção, discriminação e violência”. Assim, a sociedade, para se tornar sexualmente saudável, deve aceitar os seguintes desafios: reconhecimento de que a saúde sexual é um direito humano fundamental, de que devem existir políticas públicas para a sua promoção e proteção, de que devem existir leis que protejam os direitos sexuais, de que deve existir acesso universal a uma cuidada educação sexual adequada à idade, acesso também a serviços de saúde equipados com profissionais especializados, vigilância e monitorização adequada de comportamentos e indicadores de saúde sexual. Para se poder alcançar e manter um estado de saúde sexual, os direitos sexuais de todas as pessoas devem ser respeitados, protegidos e cumpridos. Neste sentido, a saúde sexual não deve limitar-se apenas ao aconselhamento e cuidados de saúde relativamente à procriação e ao evitamento das doenças sexualmente transmissíveis, mas também constituir uma abordagem positiva à sexualidade humana para o enriquecimento da vida e das relações interpessoais.

 

MCEESMP – Sendo enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, qual é a relação que a área da sexualidade tem com a Enfermagem?

HL – A sexualidade humana é influenciada por múltiplos fatores (biológicos, psicológicos, sociais, económicos, políticos, culturais, legais, históricos, religiosos e espirituais) e requer sempre um estudo multidisciplinar e multiprofissional para uma correta intervenção em contexto de saúde. Idealizar uma intervenção em saúde sexual requer organizar as respostas e os cuidados de saúde tendo como linha orientadora o ciclo de vida e as múltiplas transições vividas, nomeadamente nos processos de saúde/doença, que não se coadunam com protocolos de atuação e tratamento específicos de uma única problemática ou com a circunscrição a uma única profissão ou especialidade. A forma como planeamos os cuidados na área da saúde sexual ao longo destes processos transacionais do ciclo da vida requer a desconstrução de mitos e representações erróneas sobre o género e o sexo, que definitivamente têm que aglutinar as dimensões biológicas, humana e social, assim como integrar os novos conhecimentos da sexualidade humana na formação e no desenvolvimento dos profissionais de saúde.

Sempre que o continuum de saúde é quebrado, a dimensão sexual é igualmente abalada, requerendo uma preocupação acrescida na sua promoção, prevenção e identificação do problema, obrigando os profissionais de saúde, nomeadamente os enfermeiros, como elos essenciais da equipa multidisciplinar e fulcrais na prestação de cuidados, a defender a privacidade e a intimidade da pessoa doente ou com restrições de qualquer ordem, seja ao nível dos cuidados de saúde primários, diferenciados ou continuados, tornando por isso indispensável a sua inclusão no modelo holístico, assim como no regular exercício da Enfermagem. Os cuidados de Enfermagem tomam sempre por foco de atenção a promoção dos projetos de saúde de cada pessoa, independentemente da sua raça, credo ou género, e neste contexto procuram sempre, ao longo do ciclo vital, prevenir a doença e promover os processos de readaptação, procurar a satisfação das necessidades humanas fundamentais e a máxima independência na realização das atividades de vida, ao mesmo tempo que procuram a adaptação funcional aos défices e a adaptação a múltiplos fatores. Neste sentido, a sexualidade e as suas alterações terão que ser sempre objeto, e ao mesmo tempo objetivo, destes padrões de qualidade dos cuidados de Enfermagem e dos seus enunciados descritivos. Por isso, e na minha opinião, a sexualidade é um importante aspeto da qualidade de vida que os enfermeiros não devem ignorar por duas razões: 1) porque os clientes esperam e merecem cuidados de elevada qualidade, sendo que os cuidados de Enfermagem que ignoram este importante aspeto da vida estão abaixo dos padrões (de qualidade); e 2) porque os padrões de prática relacionada com a sexualidade existem, e se existem devem ser praticados.

 

MCEESMP – Qual é o papel que um enfermeiro pode desempenhar na área da sexualidade ou da saúde sexual, e qual a importância da sua intervenção?

HL – Normalmente, na presença de um problema sexual são frequentes os sentimentos de dúvida e medo por parte do cliente, manifestando enorme dificuldade em abordar o problema com os profissionais de saúde por pensar que é desadequado para a situação, ou mesmo por timidez, ou até por achar que tem que ser o profissional de saúde a determinar quando esta problemática deve ser focada. No entanto, estranhamente e não raras vezes, o mesmo acontece por parte dos profissionais de saúde, que maioritariamente demonstram uma enorme dificuldade em lidar com as questões ligadas à expressão sexual, fazendo imperar o silêncio como forma de “resolução” desta problemática. Sendo o enfermeiro o profissional de saúde que mais tempo está em contacto com a pessoa, casal ou família, em todos os contextos e em todos os momentos do seu continuum de saúde, este pode (e deve) detetar problemas sexuais o mais precocemente possível. A chave para se poder providenciar ajuda no plano sexual das pessoas está precisamente na capacidade que o enfermeiro terá em abordar o tema, de espírito aberto e através da escuta ativa, com a indispensável isenção de juízos de valor, mantendo sempre a neutralidade, mas sabendo reconhecer os seus próprios receios ou limitações (éticas ou religiosas), tratando a sexualidade da mesma forma que trataria outro assunto de saúde e, de preferência, num ambiente descontraído, mas utilizando um espaço físico que respeite a dignidade e a confidencialidade das questões de natureza sexual, providenciando assim uma discussão e capacitação serena do cliente. Finalizando, a meu ver, é impreterível que no primeiro contacto o enfermeiro, que acolhe o cliente  e que o acompanha durante todo o processo de saúde/doença,  crie uma relação empática, de compromisso, e sobretudo profissional, basilar e essencial para abordar a sexualidade protegida e promover uma cidadania sexual saudável e proativa numa área da saúde quase sempre esquecida, negligenciada, onde não abundam os recursos humanos e materiais (sendo que aqueles que existem são muitas vezes intangíveis para pessoas com baixos rendimentos, já que raramente existe comparticipação estatal), e muito pouco divulgada pelos profissionais de saúde que o assistem, levando a que esta necessidade humana básica seja por vezes estranhamente esquecida e não priorizada.

 

 

MCEESMP – Sabemos que trabalha na consulta de Sexologia no Centro Hospitalar Tondela-Viseu, EPE, que se trata de uma consulta multidisciplinar. O que lhe ensinou a experiência acerca desta interação e qual a importância do enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica na mesma?

HL – Cada vez mais os profissionais de saúde estão atentos à temática da sexualidade humana, de tal forma que já existem várias valências ligadas a esta área, tais como a medicina sexual e a sexologia clínica, que se encontram em franca expansão mundial e em Portugal, abrangendo uma multiplicidade de profissionais, tais como enfermeiros, médicos, psicólogos entre outros, que permite abordar e intervir nas pessoas que necessitem de ajuda especializada nesta necessidade humana básica com melhores resultados se o fizerem de forma conjunta e organizada. Acredito em equipas especializadas em saúde sexual, multidisciplinares e com a participação ativa de vários profissionais, nas quais o enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica poderá e deverá ter um papel fundamental, sendo que o nosso projeto, desde o início, sempre passou por trabalhar multidisciplinarmente, não em parceria, pois são tipologias de intervenção diferentes. Nós queríamos ter todas as valências de uma área tão abrangente como a sexologia clínica (Urologia/Andrologia, Psiquiatria, Ginecologia, Psicologia, Sexologia e Enfermagem especializada em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, apenas nos faltando um endocrinologista) representadas na equipa, e com os técnicos que existem no Centro Hospitalar Tondela-Viseu, EPE, conseguimos isso, pois até pela sensibilidade desta temática era importante termos dentro da equipa os terapeutas que podiam ajudar a resolver o problema (e nós sabemos que muitas das disfunções apresentadas têm que ter intervenções de vários técnicos de acordo com as áreas em que é necessário trabalhar), e assim os clientes já encontra a resolução dos seus problemas dentro da equipa, não necessitando de ir a outras consultas ou a outros profissionais, promovendo assim a proximidade, confidencialidade, e uma demora mínima na intervenção e no auxílio prestado. Porventura, no país, seremos das poucas consultas que assim trabalham, e com muitos bons resultados, sendo que o enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, pelas suas competências especificas, já que para além da mobilização de si mesmo como instrumento terapêutico este também desenvolve vivências, conhecimentos e capacidades de âmbito terapêutico que lhe permitem, durante a prática profissional, mobilizar competências psicoterapêuticas, socioterapêuticas, psicossociais e psicoeducacionais, permite o estabelecimento de relações de confiança e parceria com o cliente, assim como aumentar o insight do mesmo sobre os problemas e a capacidade de encontrar novas vias para a sua resolução.

 

MCEESMP – E ao nível da gestão das instituições públicas de saúde, considera que existe sensibilidade para a importância das questões ligadas à saúde sexual que vão para além da dimensão reprodutiva?

HL – Eu considero que já se começa a entender, ao nível da gestão de topo, que esta temática é fundamental para se conseguir um ótimo bem-estar individual e de casal, sendo que a maior procura por parte dos clientes leva também a que se perceba que a população quer, cada vez mais, sentir-se bem e fazer sentir bem ao seu próximo, e isso passa sempre por uma sexualidade plena e feliz. Em Portugal, ao longo das últimas décadas, muitos profissionais de várias áreas, bem como entidades não governamentais e governamentais, contribuíram para as inegáveis melhorias na saúde sexual e reprodutiva: promoção da educação sexual, acesso à contraceção, diminuição da gravidez na adolescência, diminuição da mortalidade materna relacionada com o aborto não seguro, promoção da não estigmatização em relação à identidade e escolhas sexuais, e se considerarmos que o Dia Nacional da Saúde Sexual foi aprovado por unanimidade pelo Parlamento Português, e é hoje celebrado, tendo Portugal sido o primeiro país em todo o mundo a instituir oficialmente um Dia Nacional da Saúde Sexual, reconhecendo no seu quadro legislativo a saúde e os direitos sexuais como uma prioridade, logo aí se percebe que este é o caminho a seguir.

 

MCEESMP – Considera que ainda existe algum receio em procurar ajuda clínica na área da sexualidade ou algum preconceito em relação à sexologia?

HL – É difícil falar em termos gerais porque, neste momento, temos muitas realidades em coexistência. Portugal é um país maioritariamente com uma população conservadora em que, para muitos, o assunto da sexualidade é tabu e difícil de ser falado. Principalmente no género masculino e na faixa etária a partir dos 50 anos, são as mulheres, por norma, a tomar a iniciativa de tocar nestas temáticas com o enfermeiro ou outro técnico de saúde, ou mesmo a incentivar os familiares do género masculino a procurar ajuda. Além disso, hoje em dia vive-se muito para o desempenho, inclusivamente na sexualidade, e isso tem levado a que haja uma maior abertura para procurar ajuda, já que algumas pessoas têm vontade de melhorar a sua performance. Tenho muitas pessoas que chegam à consulta com quadros diferentes dos que se verificavam há alguns anos. Hoje em dia, as pessoas procuram uma resposta para a sua vida sexual, além da boa função. Cada vez se verificam mais casos de insatisfação ou discórdia, mesmo quanto à expetativa em relação ao papel que a sexualidade deve ter na vida de cada um. Isto acontece muito nos casais, mas não só. Em relação a um possível preconceito ou desconfiança, felizmente a sexologia portuguesa tem atualmente uma excelente projeção e é constituída por um conjunto de profissionais com uma formação e trabalho sólido (maioritariamente associado à Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica) a nível nacional e internacional, o que não deixa de ser impressionante para um país tão pequeno. A sexologia portuguesa está numa fase muito boa, e na minha ótica, com espaço para crescer, sendo sem dúvida uma área na qual os enfermeiros, nomeadamente os especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, podem cada vez mais apostar e ser uma referência, quer pelas caraterísticas especificas da especialidade que anteriormente abordei, quer pelo core de conhecimentos adquiridos ou pelas estratégias de intervenção que estão na base da maior parte dos tratamentos sexuais.

 

Muito obrigado pela sua amabilidade e partilha. Estamos certos de que as ideias por si partilhadas ajudaram a abrir horizontes relativamente ao tema e, naturalmente, a melhor compreender a relação entre as competências específicas do enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica e a potencial aplicabilidade das mesmas no domínio da sexualidade e da saúde sexual.