Dia Mundial da Saúde Mental

Dia:  10-10-2021

O dia 10 de outubro assinala, anualmente, o Dia Mundial da Saúde Mental. No ano 2021 a World Federation for Mental Health determinou que as comemorações desta efeméride seriam subordinadas ao tema “Saúde Mental num Mundo Desigual”. A realidade portuguesa no que concerne à acessibilidade a cuidados de saúde mental, é sabido, encontra-se ainda distante daquilo que seria desejável. Contudo, esta realidade é particularmente mais gravosa nos países com menos recursos, vulgarmente designados por países em vias de desenvolvimento.

 

Como tal, a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (MCEESMP) da Ordem dos Enfermeiros, no âmbito das comemorações do Dia Mundial da Saúde Mental, tomou a iniciativa de entrevistar três enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica que realizaram missões humanitárias ao longo do seu percurso profissional. Os Srs. Enfermeiros Karina Oliveira, Luís Silva e Patrícia Pereira gentilmente acederam ao convite que lhes foi endossado e partilharam vivências e experiências que nos devem fazer recordar, a cada momento, que muito ainda há a fazer para que todos os seres humanos sejam efetivamente iguais em dignidade e em direitos.

 

Karina Oliveira Luís Silva Patrícia Pereira

 

 

MCEESMP – Participar numa missão humanitária é seguramente um confronto permanente com uma realidade desigual. Partilhando um pouco da sua experiência, quais foram as maiores desigualdades que encontrou por comparação com a realidade portuguesa?
Karina Oliveira (KO) – Uma missão humanitária molda-nos enquanto profissionais de saúde pelo contacto com diferentes realidades e experiências. Mas das maiores desigualdades que encontrei foi efetivamente ao nível do acesso a cuidados de saúde, dificuldades de acesso por inexistência ou escassez de estruturas. Destaco também o reduzido número de profissionais de saúde para a prestação de cuidados, o acesso condicionado a medicação, a exames complementares, etc. E, principalmente a saúde mental, em muitos países continua ainda a ser esquecida ou negligenciada…
Luís Silva (LS) – A catástrofe ocorrida no Haiti, em resultado do terramoto de 12 de janeiro de 2010, foi de uma dimensão particularmente invulgar, tal o número de vítimas e os danos materiais. Números ajustados estimam mais de 150 mil mortos e mais de meio milhão de pessoas deslocadas apenas na capital do país e área geográfica envolvente. A ideia que me parece resumir melhor o confronto entre o Haiti e a nossa realidade de país desenvolvido pode bem ser esta: o que damos por garantido cá, no Haiti simplesmente não está disponível, é muito escasso, ou está ao alcance de poucos. Isso explica-se pela pobreza do país, a sua condição geográfica propícia a catástrofes naturais (terramotos e tempestades), e a constante instabilidade política ao longo da sua história. Cheguei a Port-au-Prince dois meses depois do terramoto e uma parte muito significativa das pessoas dependia completamente da distribuição de víveres fornecidos por Organizações Não Governamentais (ONG) ou de outros países que forneceram ajuda.
Patrícia Pereira (PP) – Se considerarmos que as forças de ordem sociopolítica e económica determinam as condições em que as pessoas vivem e a sua acessibilidade aos cuidados de saúde mental, percebemos rapidamente as diferenças entre os países considerados subdesenvolvidos e Portugal. Portanto, eu diria que as maiores desigualdades se concentram no investimento na área e, por consequência, nos tratamentos disponíveis, na acessibilidade, e até na construção de uma consciência coletiva sobre a problemática. Este confronto é imediato, sentimo-lo mesmo sem querermos.

 

MCEESMP – Em alguma das missões humanitárias em que participou esteve envolvido em projetos ligados à saúde mental? Se sim, fale-nos um pouco desse projeto.
KO – Foram vários os projetos em saúde mental. Em Laclubar (2006-2007, 2009), Timor-Leste, com os Irmãos Hospitaleiros de São João de Deus, estive ligada à criação do primeiro centro de intervenção comunitário em saúde mental. Na Cidade da Praia (2010, 2011), em Cabo Verde, participei em projetos na área de capacitação de jovens com dependência de substâncias / drogas e de enfermeiros do hospital de saúde mental (formação em diversas áreas de saúde mental), e em Lesbos (Atenas, Grécia) (2016) realizei intervenção junto da pessoa em situação de refugiada.
LS – Integrei um projeto da “Médicos do Mundo – Portugal” durante um mês, entre março e abril de 2010. Na sua conceção, o projeto previa intervenção específica em saúde mental num segundo momento. Porém, tal não chegou a acontecer dadas as limitações financeiras e a constatação de que todo o orçamento se deveria canalizar para as necessidades de saúde em moldes genéricos, ora de clínica geral (todas as faixas etárias), ora de foro traumatológico, como consequência direta da catástrofe. Portanto, o projeto previa e concretizou-se, essencialmente, como um posto de saúde avançado, oferecendo assistência em tudo semelhante à de um centro de saúde (incluindo vacinação). Demos assistência e encaminhamento (para o principal hospital local) a um número de casos psiquiátricos muito reduzido. Neste particular, a nossa intervenção breve passou por identificar a natureza psiquiátrica dos casos (prováveis reações de adaptação em pessoas mais vulneráveis). Lembro-me que, numa lógica de triagem, estabilização e orientação para a especialidade, apenas em dois desses poucos casos administramos Diazepam. Surpreendentemente pouco!
PP – Não, infelizmente não. As missões foram sempre ligadas a projetos sociais e no domínio da saúde física. A preocupação com a psique esteve sempre lá e, de outras formas e por outros caminhos, foi possível aproximar-me desse cuidado, embora não fosse o objetivo primordial que me levou a essas missões.

 

 

MCEESMP – Relativamente aos cuidados de saúde mental às populações, quais foram as principais dificuldades que encontrou e quais as principais necessidades que identificou?
KO – Quando nos envolvemos com populações diferentes percebemos melhor o conceito “cultura”. Há padrões e crenças culturais distantes das minhas (das europeias). A minha maior dificuldade era entender a linha ténue entre os padrões culturais e os direitos humanos. Dou um exemplo: um dos “embates” culturais foi no caso de uma jovem que teve uma convulsão febril e deixou de ir à escola por estar “possuída”. Criar diálogo com toda a comunidade para a jovem ser reintegrada na escola/comunidade foi um desafio. Em missões nas quais há conceitos culturais diferentes, há também a necessidade de criar uma linguagem comum. Não pode haver o “eu”, nem o “eles”, mas antes o “nós”.
LS – A primeira impressão que guardo da chegada a Port-au-Prince é um tanto inesperada. Numa catástrofe de tão grande escala esperava ver toda uma população vergada pela força dos lutos (humanos e materiais) que tinham a fazer. Mas o que observei nas ruas foram pessoas mobilizadas e empenhadas em repor a normalidade nas suas vidas, em busca de mantimentos e melhores condições sanitárias e de conforto. Um pouco por todo lado, grupos de pessoas arrumavam os destroços e limpavam as ruas ou aguardavam ordeiramente nas filas para acederem a mantimentos e bens de conforto. Importa realçar que cheguei dois meses depois, numa fase de pós-emergência e início de recuperação. Uma constatação que pude fazer, ainda que sem oportunidade de aprofundar, foi a do potencial de trauma psicológico para os profissionais ou leigos que assistiram as vítimas. Conheci alguns leigos voluntários e profissionais que ajudaram nas primeiras horas ou dias após o terramoto, e pude observar a angústia marcada no discurso e o recurso a mecanismos de coping ineficazes (consumo de álcool, por exemplo). Cuidar de quem cuida é também um imperativo.
PP – As dificuldades e as necessidades andam, se assim podemos dizer, de mãos dadas. A maior dificuldade em cuidar parte exatamente da consciência coletiva frágil que existe na comunidade. Os cuidados de saúde mental são pouco reconhecidos. Quando efetivamente existe uma vulnerabilidade mental, esta é entendida erroneamente, é encarada como um feitiço, bruxaria. A dificuldade parte, assim, deste estigma e pouco conhecimento acerca da saúde mental. As principais necessidades começam, antes de mais, por ajudar a população a entender o que é a saúde mental, por ajudá-la a dar um significado às suas vivências que muitas vezes estão associadas a vidas de extrema pobreza, instabilidade e insegurança quanto ao futuro. É absolutamente fundamental esclarecer a sociedade e apoiá-la neste sentido. Isto faz sentido tanto no meio rural como urbano.

 

MCEESMP – Caso tenha realizado missões humanitárias em mais do que um contexto desfavorecido, fale-nos um pouco do contexto no qual encontrou maiores necessidades em saúde mental.
KO – Em todos os contextos há necessidade de intervenção em saúde mental. Aquele no qual encontrei maiores desafios foi em Lesbos (Atenas). Pessoas com formação e educação superior cujo único “crime” que tinham cometido fora fugir da guerra e procurar melhores condições de vida para as suas famílias. Estar “parado” à espera de legislação, normas europeias e/ou estruturas de suporte cria no ser humano uma sensação de angústia, inutilidade, incapacidade, dúvidas difíceis de gerir. Eu própria questionei-me se me identifico com esta Europa na qual tanto se fala de direitos humanos, mas não é célere na ajuda humanitária aos refugiados.
LS – A missão no Haiti foi a minha única experiência de foro humanitário internacional. Sabemos que na sequência de um desastre ou catástrofe as pessoas priorizam as necessidades básicas, como o abrigo em segurança e a alimentação, para evitarem perdas maiores. E, de certo modo, nestas condições de real luta pela sobrevivência, os impactos na saúde mental vão ficando encobertos ou são vencidos através das conquistas, ainda que reduzidas, de mais segurança, conforto ou alimentação. Muitas vezes, só depois de garantidas essas necessidades, surge o espaço para as manifestações de foro psiquiátrico, ou se quisermos, o tempo próprio para a sua eclosão. Ainda assim, tive conhecimento de existirem projetos de saúde mental em curso, realizados por ONGs. Certamente, nos meses e anos seguintes as necessidades em saúde mental foram constatadas, mas desconheço em que escala e de que formas foram ou não alvo de assistência especializada.
PP – Apesar da minha visita ter sido muito curta, a visita ao orfanato na Mauritânia foi absolutamente assoladora neste aspeto. Certamente senti toda esta comunidade como sendo aquela que mais necessidades apresenta do ponto de vista da saúde mental, por se tratarem de crianças e adolescentes. Para além do cenário de destruição e extrema pobreza, deparei-me com uma população que todos sabemos ser mentalmente mais vulnerável. Juntamos a todas as dificuldades uma realidade muitíssimo dura: independentemente da razão, todas aquelas crianças e jovens tinham sido abandonadas. Como se sobrevive emocionalmente a isto? É duro, é preciso trabalhar o significado de sobrevivência e de esperança numa realidade na qual tudo isto está tão ausente.

 

MCEESMP – Analisando as dificuldades e necessidades encontradas, enquanto enfermeira(o) especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, o que acha que poderia ser feito para minimizar as desigualdades identificadas?
KO – Como enfermeira especialista em saúde mental, aquilo que procurei/procuramos fazer em projetos específicos foi capacitação, capacitação, capacitação. Enfermeiros, enfermeiros especialistas em saúde mental, agentes de saúde comunitários, mães e pais capacitados são sem dúvida um pilar na sociedade em que estão inseridos e os melhores projetos/potências de saúde mental, pois a formação/capacitação perdura no tempo e no espaço.
LS – Sintetizando, creio que a assistência em saúde mental e os seus recursos eram muito diminutos. Estaria, como talvez ainda hoje esteja, quase tudo por fazer, quer ao nível dos recursos humanos quer materiais, se considerarmos a realidade abrangente do Haiti. Mas devo reconhecer que não conheci em concreto a verdadeira realidade do país a este nível.
PP – É uma corrida contra o tempo, mas é possível! O mundo “está a avançar” a uma velocidade incrível, e isto também chega aos países mais desfavorecidos, cada vez mais! Por vezes parece que o hiato é cada vez maior. O primeiro passo passa por alinhar estratégias sociais e económicas com as políticas de saúde mental, assumir que a saúde mental tem que ser considerada como foco de intervenção de primeira linha para o bem de toda a comunidade. Com isto feito, o enfermeiro deve desenhar programas educativos nesta área, ajudar no combate ao estigma, esclarecer a população. Para isso, este terá de conhecer a população, conhecer os seus costumes, bem como as necessidades socioeconómicas e políticas para saber integrar as experiências de cada pessoa e ajudar a dar-lhes um sentido. Portanto, começamos a minimizar as desigualdades quando conhecemos efetivamente as pessoas e a saber o que elas precisam. O primeiro passo é estar verdadeiramente próximo da população, nas aldeias, nas cidades, nas escolas, nos hospitais...mostrar disponibilidade, estarmos presentes.