Dia Mundial da Saúde Mental Materna

Dia:  04-05-2022

Celebra-se na primeira 4.ª feira do mês de maio, este ano no dia 4 de maio, o Dia Mundial da Saúde Mental Materna. A área da saúde mental materna tem ganho destaque dada a importância que tem no bem-estar, não só da mulher, mas também do bebé e da família envolvente. O enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (ESMP) tem um papel importante na promoção da saúde mental destas mulheres, assim como na intervenção precoce em situações de surgimento de sintomas psicopatológicos.

 

Para assinalar este dia a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (MCEESMP) da Ordem dos Enfermeiros (OE) decidiu realizar uma entrevista à Sra. Enfermeira Especialista em ESMP Ana Soraia do Vale (ASV). A mesma tem trabalhado amplamente nesta área, em diversos contextos, e teve um projeto financiado no âmbito do Orçamento Participativo da Secção Regional do Sul da OE, em 2020, intitulado “Mãe, nós ajudamos!”, uma linha de apoio a mães/pais grávidas(os) ou no pós-parto que necessitem de apoio no âmbito da saúde mental.

 

MCEESMP – A Saúde Mental Materna parece ser uma área ainda com pouco investimento, não só na ESMP, mas em todas as áreas da saúde. Haverá apenas pouco investimento ou estaremos perante a necessidade de promover a literacia e a sensibilização para esta área? Consegue sucintamente explicar em que consiste trabalhar na área da saúde mental materna?

 

ASV – Como é sabido, a saúde mental é uma área que sempre teve um reduzido investimento. Tal como consta no Atlas de Saúde Mental da Organização Mundial de Saúde (2020), para o qual também contribuímos como estado-membro, a percentagem dos orçamentos de saúde dos governos gasta com a saúde mental pouco mudou durante os últimos anos, ainda oscilando em torno dos 2% do Produto Interno Bruto.
O maior investimento que tem sido feito ao longo dos anos na área de saúde mental perinatal é na investigação científica (no geral), apesar de que pouco se tem traduzido na translação do conhecimento produzido para a prática. Se afunilarmos então para a área de Enfermagem de Saúde Mental Perinatal, o cenário é pior. Estamos certamente perante um problema que carece, em largo espetro, de investimento a nível económico e humano, mas também de aposta na literacia e sensibilização, quer para profissionais de diferentes áreas (e não só da saúde), quer para as mulheres e respetivas famílias.
Sei que sou suspeita, mas acredito que qualquer pessoa deveria saber um pouco mais sobre esta temática. Sempre me fez sentido o provérbio “É preciso uma aldeia para educar uma criança”, mas se assim é, então é preciso uma aldeia para acolher, em primeiro lugar, quem tem a primeira e principal função de estar disponível para essa mesma criança em todas as fases do seu desenvolvimento. Se a “aldeia” desconhece e/ou desvaloriza determinadas manifestações dos problemas de saúde mental no período perinatal, não estará tão atenta e ser-lhe-á mais difícil ajudar neste sentido. E se assim for, então como pode ajudar, efetivamente, a educá-la? E aqui remeto diretamente para o quão fundamental são os colegas que trabalham nos cuidados de saúde primários no que toca ao desenvolvimento deste trabalho – o de trabalharem com a “aldeia” para que se possa obter resultados com a família, e também com a criança.
O que me parece é que há uma lacuna enorme de respostas neste sentido (especialmente na comunidade) e que é sentida diariamente por todos os que estão de alguma maneira relacionados com a área: mulheres/famílias e profissionais de saúde. Não por falta de reconhecimento e empenho dos profissionais que lá trabalham, mas essencialmente pela falta de recursos humanos para organizar o trabalho de forma a poder dar-se uma resposta mais qualificada por esses profissionais.
Relativamente ao trabalho realizado no âmbito da saúde mental materna, está muito focado na dimensão da transição para a maternidade/paternidade, onde especialmente no período perinatal todas as semanas há novidades. Frequentemente surgem novos desafios para a tríade mãe-pai-bebé, alterações, reajustes, experimentação de novas dinâmicas e um constructo diário, naturalmente muito intenso e pouco consciente, sobre o desempenho do papel materno/paterno, que vai remeter diretamente para as vivências pessoais de ambos. E este é um dos grandes desafios deste período: tudo acontece a uma velocidade considerável, com necessidade frequente de recorrer, utilizar e desenvolver mecanismos de coping adequados ao efeito. No meio de tudo isto, e por mais exigente que possa estar a ser, há sempre um novo elemento na família - o bebé - que tem o seu próprio tempo e necessidades que precisam de ser supridas. E este tempo pode nem sempre estar sincrónico/sintónico com o dos pais. A quantidade e complexidade de fenómenos que ocorrem nesta fase do ciclo de vida é tão variável e intensa que é impossível duvidar da quantidade de trabalho que existe para se fazer nesta área. Há muitas alterações que são prováveis de ocorrer neste período e os enfermeiros são intervenientes absolutamente fundamentais neste âmbito, especialmente porque estão nos locais privilegiados para a deteção precoce destes casos.

 

 

MCEESMP – Da sua experiência, as mulheres costumam pedir ajuda facilmente? E não ocorrendo, porque acha que acontece? Estigma? Multiplas exigências da mãe/mulher perfeita? Alterações emocionais consideradas normais? O que leva a haver tantas dificuldades na identificação e encaminhamento das situações?
ASV – Há alguns anos atrás participei numa peça jornalística sobre a depressão pós-parto e, no dia seguinte, estava eu a almoçar num restaurante e estava um casal de idosos a fixar-me com o olhar. Eu pensei que isso estava a acontecer porque a minha filha mais velha, na altura muito pequenina, estava a fazer uma grande birra. Entretanto, saí para a rua com ela e a senhora levantou-se muito rápido da mesa e veio ter comigo. Nesse momento, com os olhos em lágrimas e a voz trémula, parabenizou-me pela participação na peça e partilhou uma série de considerações sobre o seu passado e de como estava relacionado com esta problemática. Falou-me sobre ela, sobre a sua mãe e tia que tinham tido depressão pós-parto diagnosticada, mas que não tiveram autorização para falarem sobre o assunto fora dos limites do núcleo familiar. Falou-me sobre muito do que sentiu e nunca se esqueceu naquela altura, tendo apontado muito do que viveu nesse período como o principal motivo que a levou a não querer ter mais filhos e, no final, falou-me sobre um acontecimento trágico com a sua única filha: uma filha que também teve depressão pós-parto, pelo que descreveu, já com sintomatologia psicótica, e que acabou por cometer suicido nessa sequência. Nesse dia fazia 10 anos que tal tinha ocorrido.
Conto esta história porque ela ilustra vários dos problemas com os quais, em pleno século XXI, ainda muito lidamos no que toca à partilha sobre problemas relacionados com a saúde mental perinatal: o estigma e a desvalorização, o medo, a baixa literacia em saúde, estando esta última associada à desinformação.
Tal como é descrito no livro do Professor António Macedo e da Dra. Ana Telma Pereira – Saúde Mental Perinatal (e que tive o privilégio de conhecer quando comecei o projeto “Mulher, Filha e Mãe”) - o mito da “maternidade rima com felicidade” ainda prevalece na nossa sociedade. A maternidade nem sempre é um período que é vivenciado de forma plena, tranquila, feliz, e não há problema algum. Mas se temos uma mulher em sofrimento, e com a agravante de todas as alterações hormonais que já são conhecidas e que naturalmente ocorrem neste período, é importante valorizar. Valorizar, sempre! Para além de que nem todas as alterações que se desenvolvem nesta fase se justificam com as alterações hormonais, claro. Muitos dos fatores de risco para o desenvolvimento de alterações do humor e da ansiedade no período perinatal são psicossociais, e é a esses que temos de dar cada vez mais atenção. Não descurando nenhuns, valorizando todos.
O medo de “não ser boa mãe o suficiente”, como é verbalizado por muitas mulheres, ou o medo de que se não fizerem “tudo bem” (seja lá o que isso for para cada uma delas) lhes possam ser retirados os filhos, por exemplo. Estes são exemplos comuns que relaciono com a fraca procura de ajuda especializada nesta fase das suas vidas e que está claro na evidência a que temos acesso atualmente. É também na valorização, clarificação, acolhimento e integração destes medos que reside muito do trabalho psicoterapêutico que é desenvolvido com estas mulheres no âmbito da Enfermagem de Saúde Mental Perinatal.
A baixa literacia em saúde nesta área é facilmente observável se notarmos que ainda há muitas pessoas que relacionam a depressão pós-parto, em primeiro lugar, com a tristeza observável, e nem sempre este é o primeiro/principal sintoma (por exemplo). E associado a este fenómeno, a desinformação. Existem cada vez mais páginas na internet, blogues de mães a partilharem as suas experiências, grupos e círculos de mulheres que se juntam para falar sobre a maternidade e partilharem experiências, o que é ótimo do ponto de vista empírico. Contudo, todas as mulheres têm experiências diferentes, e a própria depressão perinatal e respetivo curso manifesta-se de maneiras muito diferentes. Será que quem faz a gestão destas páginas/grupos/círculos conhece e tem experiência/conhecimento para identificar estes casos? E quando identifica, o que faz? Para onde/quem encaminha? E estas respostas/profissionais, existem? Estão sensibilizados para esta área? Há muito trabalho para ser feito neste sentido! Tudo isto leva a que uma mulher quando desenvolve alterações emocionais neste período, e especialmente não tendo capacidade financeira para obter ajuda a nível particular, se sinta ainda mais desamparada. Muitas vezes, não sabendo sequer como começar este discurso de pedido de ajuda, ou a quem pedir, ou havendo um tempo de resposta muito elevado para as necessidades atuais das mesmas ao nível do serviço nacional de saúde, levando a que este problema continue a passar (por vezes) “despercebido”, mas sendo significativamente prevalente.

 

 

MCEESMP – Fale-nos um pouco do que tem sido a sua experiência profissional nesta área e as principais dificuldades que tem encontrado.

 

ASV – A minha experiência começou há 7 anos, quando fundei o projeto “Mulher, Filha e Mãe”. Este projeto começou com um blogue que tinha dois objetivos: conhecer histórias de outras mulheres e famílias cuja transição para a maternidade não tinha sido sinónimo de felicidade e sensibilizar para a saúde mental perinatal através de informação fidedigna e simples, para que todos pudessem ler e perceber. Mal sabia eu o que me esperava. O blogue começou a ganhar visibilidade, comecei a receber várias histórias/partilhas/pedidos de ajuda, e depois senti que tinha de fazer algo com o que partilhavam comigo. Devia encaminhar para quem estivesse mais habilitado para o efeito, mas quem? Não sabia como os cuidados estavam organizados neste sentido, então fui à procura dessa informação. Daí até ingressar na especialidade de Enfermagem de Saúde Mental foi um instante. No início, via este caminho como uma forma de aprofundar conhecimentos na área de Saúde Mental Perinatal, de tentar conhecer mais profissionais desta área, trabalho já desenvolvido no nosso país e o que poderia fazer para acrescentar. Com o passar do tempo, tornou-se claro que foi muito mais.
Conheci colegas com grandes projetos e experiência de longa data nesta área e que me ajudaram muito a desenvolver os meus, nomeadamente, a Enf.ª Maria João Nascimento, da Unidade de Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia, a Enf.ª Carla Correia, da Unidade de Saúde Familiar da Lourinhã, e a Professora Patrícia Pereira, da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, com quem ainda hoje tenho o privilégio de partilhar questões, práticas e construir conhecimento na área. Através do contacto que mantive com instituições inglesas e australianas, que estão muito à frente no que toca ao trabalho desenvolvido nesta área, desenvolvi um instrumento específico de colheita de dados para utilizar na consulta de Enfermagem de Saúde Mental Perinatal que pretendia realizar após a concretização da especialidade, e assim foi. Comecei a desenvolver uma prática essencialmente privada de acompanhamento especializado em Enfermagem de Saúde Mental de mulheres e famílias em contexto presencial e domiciliário, consultoria, e apoio a instituições e profissionais que me foram contactando. Em 2017 fundei, em conjunto com mais cinco mulheres que muito admiro e que desenvolvem trabalho nesta área (algumas delas, acima identificadas), a “UMBILICAL”, uma associação que trabalha em prol da promoção do bem-estar emocional na gravidez e pós-parto e, através da mesma, tenho dado continuidade a este trabalho (na maior parte das vezes de forma voluntária), especialmente através da sensibilização para a área de Saúde Mental Perinatal.
Entretanto voltei a ser mãe e tive de abrandar o ritmo, e agora estou novamente a acompanhar mulheres e famílias em contexto presencial e domiciliário, e com outros projetos de investigação em desenvolvimento através da “UMBILICAL”. Brevemente terão mais notícias nossas neste sentido!
No que toca às dificuldades têm sido imensas! Primeiro, o facto de ser uma área muito pouco desenvolvida no nosso país e, portanto, há tantas necessidades neste sentido que é difícil priorizar. Por exemplo, se tivermos em conta que no Reino Unido existem centenas de associações que se dedicam ao apoio e acompanhamento em saúde mental de mulheres e famílias no período perinatal e, a posteriori, olharmos para o nosso país, vemos a discrepância de investimento nesta área. Também podemos ir à Nigéria, Austrália, Espanha, França, etc., e vemos que estão a anos-luz de Portugal. No entanto, torna-se pior quando acrescentamos a “Enfermagem de Saúde Mental” à equação. Uma das primeiras dificuldades que encontrei foi conseguir desenvolver trabalho académico nesta área. Diziam-me que “Enfermagem de Saúde Mental Perinatal” não existe. E, de facto, se procurarmos no meio académico/cientifico, é um termo que não existe. Contudo, há colegas a fazer imenso trabalho nesta área, por isso, trabalho existe, mas publicamos e partilhamos poucas práticas neste âmbito.
Existem mais dificuldades, muitas “lutas” de egos e de áreas subjacentes e que se cruzam com a nossa, e nós com as deles (naturalmente), mas também noto que as pessoas estão cada vez mais despertas para o trabalho desenvolvido nesta área. Os pedidos de ajuda têm chegado mais cedo e há cada vez mais pessoas, inclusive figuras públicas, a falarem sobre o tema, o que facilita a desmistificação de alguns conceitos.


MCEESMP – Teve um projeto financiado no âmbito do Orçamento Participativo da Secção Regional do Sul da OE, em 2020, intitulado “Mãe, nós ajudamos!”. Pode falar-nos um pouco acerca dele?
ASV – Sim! A linha telefónica “Mãe, nós ajudamos!” era um projeto que há muito vínhamos a falar na “UMBILICAL” (mesmo antes da pandemia), e apesar de estarmos todas absorvidas com os nossos trabalhos a full-time (muitas são enfermeiras, e em plena pandemia da Covid-19 sabemos bem como fomos todos absorvidos em termos de trabalho), resolvemos concorrer ao orçamento participativo da Ordem dos Enfermeiros para tentarmos dar andamento a este projeto que, em plena pandemia, ainda mais sentido nos fez.
O objetivo da linha telefónica é ter sempre (preferencialmente) um enfermeiro especialista em ESMP ou um psicólogo por detrás, num determinado período do dia, para poder receber o contacto de mulheres e respetivas famílias, e profissionais que necessitem de esclarecer alguma questão no âmbito da Saúde Mental Perinatal. Mães e pais com dúvidas sobre o choro dos seus bebés, em sofrimento, com dificuldade em gerir a ansiedade/stress, famílias/amigos com dúvidas sobre como podem ajudar estas mães/pais, mulheres e famílias que necessitam de um espaço de escuta ativa e direcionado/especializado, entre outros, eram motivos para nos poderem contactar. A linha esteve em funcionamento de 15 de março de 2021 até 31 de março de 2022. Os primeiros seis meses foram financiados pelo valor adquirido através do orçamento participativo e, a posteriori, o trabalho passou a ser realizado através do voluntariado de vários elementos da “UMBILICAL”. Neste momento estamos a reestruturar a sua forma de funcionamento para podermos colocá-la em prática mais eficaz e eficientemente, atendendo às potencialidades e limitações que conhecemos neste primeiro ano de funcionamento.

 

MCEESMP – Muito obrigado pela sua amabilidade e partilha. Estamos certos de que as ideias por si partilhadas ajudaram a esclarecer todos os enfermeiros, em particular os especialistas em ESMP, e a melhor compreender o que está a ser feito e aquilo que ainda falta fazer para melhorar a prestação de cuidados à mulher no período perinatal.