Dia Mundial da Esquizofrenia

Dia:  24-05-2021

Comemora-se hoje, dia 24 de maio, o Dia Mundial da Esquizofrenia. Considerando que esta se trata de uma doença mental grave, que afeta de forma substancial a pessoa doente e todos aqueles que a rodeiam, a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (MCEESMP) da Ordem dos Enfermeiros (OE) decidiu assinalar a data com uma entrevista ao Enf. Miguel Narigão (MN), enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (ESMP) que atualmente integra a Comissão Nacional de Coordenação da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI).

 

A entrevista realizada visou conhecer um pouco melhor a sua perspetiva, enquanto enfermeiro especialista em ESMP e membro da Administração Central do Sistema de Saúde, I.P., acerca da doença, bem como acerca da mais-valia que os Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental podem constituir para as pessoas com esquizofrenia.

 

MCEESMP – As pessoas com esquizofrenia são, historicamente, alvo de estigma e discriminação por parte da sociedade. Olhando para trás, para o período do início do seu exercício profissional, pensa que algo mudou a este nível?

MN – O estigma e discriminação estão ainda muito presentes na nossa sociedade, incluindo nos serviços de saúde. A iliteracia sobre o tema da saúde mental é o motivo principal. No entanto, considero que tem existido mudança, fruto da maior atenção dada a este tema na preparação académica de alguns futuros profissionais, designadamente de Enfermagem, fruto da partilha pública mais frequente dos problemas de saúde mental, por vezes na primeira pessoa e por pessoas com algum protagonismo social, e também por via de momentos de crise como o de 2008 e o atual, que conferem maior proximidade e identificação das pessoas com o sofrimento psicológico. 

A esquizofrenia tem consigo, no entanto, o peso das alterações comportamentais e comunicacionais que podem provocar constrangimentos significativos na qualidade das relações interpessoais, o que dificulta a aceitação da pessoa com esta doença.

Em relação aos profissionais da saúde, penso que os cuidados continuados integrados de saúde mental (CCISM) são um bom exemplo do que pode suceder quando profissionais com experiência de intervenção em saúde mental se encontram com os de outras valências e têm de trabalhar juntos. Este encontro cria uma oportunidade de reflexão conjunta sobre o papel de cada técnico e dos problemas que enfrenta. Tem sido muito gratificante constatar o envolvimento dos colegas que não tinham experiência nesta área de cuidados.

 

MCEESMP – O que podemos nós, enquanto enfermeiros especialistas em ESMP, fazer para que haja uma mudança na forma como a sociedade encara a esquizofrenia?

MN – É sabido que a forma mais efetiva de reduzir o estigma é trazer para a proximidade de quem discrimina as pessoas com esta perturbação, enquanto se aumenta o conhecimento, principalmente sobre o problema da pessoa e não tanto sobre a patologia. O objetivo dos enfermeiros é tornar evidente o drama humano, evidenciando que as pessoas não são no essencial diferentes, a forma como manifestam o seu sofrimento é que as distingue.

Para os enfermeiros que lidam diretamente com pessoas com esta doença a responsabilidade acresce, porque a sua perspetiva deve ser sempre reabilitativa a partir do primeiro contacto que têm com uma pessoa com doença mental grave. Isto significa que quando intervimos devemos ter presente a evolução previsível da doença, os problemas associados, e desde esse primeiro contacto ir estabelecendo pontes com os recursos necessários. Desde logo, com as famílias e com recursos na comunidade, de modo a manter uma ligação que possibilite um melhor acompanhamento e maior enquadramento da pessoa. É absolutamente essencial evitar o isolamento ou a sensação de isolamento e promover a utilização de espaços nos quais não se permaneça exclusivamente entre pares, desde que essa opção não represente um fator de ansiedade excessivo. 

 

MCEESMP – Ao nível da reabilitação psicossocial e reintegração das pessoas com esquizofrenia na comunidade, o que está a ser feito em Portugal? Na sua opinião, porque é que a sociedade continua a não promover a reintegração destas pessoas no mercado de trabalho?

MN – Um dos motivos pelos quais tal não acontece deve-se ao estigma ainda presente na nossa sociedade, o que nos torna menos solidários. Por outro lado, somos demasiado pobres em termos económicos, o que reduz o número de empresas com vontade de criar lugares de trabalho para pessoas com diferente condição produtiva.

Existem instrumentos legislativos que protegem o emprego e o acesso ao emprego, mas mais dirigidos à deficiência, e que precisam de melhor adaptação às pessoas com doença mental grave, designadamente na flexibilidade horária adaptada à incapacidade que a pessoa apresenta, evitando assim períodos prolongados de baixa médica e reforma por incapacidade como acontece nas situações mais debilitantes.

Mas na reabilitação das pessoas com esquizofrenia precisamos também muito de instrumentos na área da habitação, como recuperação de habitação própria e alternativas habitacionais. É um dos problemas que surge com frequência e que atrasa a reintegração da pessoa com doença mental grave. Penso que nesta área as autarquias podem ser mais interventivas.

Como foi referido no relatório sobre as experiências piloto de CCISM (http://www.acss.min-saude.pt/wp-content/uploads/2016/07/Relatorio-CCISM-2020.pdf), sou da opinião que esta deveria ser uma área de investimento da Comissão Nacional da RNCCI, em articulação com o Programa Nacional de Saúde Mental (PNSM), porque estes são recursos determinantes para a recuperação da pessoa com doença mental grave.

 

MCEESMP – Os Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental continuam a ser vistos como uma esperança para as pessoas com esquizofrenia, mas tardam em conseguir dar resposta às necessidades existentes. O que justifica o atraso na expansão de um recurso tão relevante para a saúde mental em Portugal?

MN – O atraso deve-se a um período de experiências-piloto extenso. As experiências-piloto são absolutamente necessárias para se poder ajustar as respostas pretendidas ao objetivo de reabilitação psicossocial, integrando a experiência dos utilizadores das respostas e das equipas prestadoras, mas demorou mais do que o previsto. Esta demora deveu-se à dificuldade no desenvolvimento de todas as tipologias planeadas para as cinco regiões de saúde, por vários motivos que foram identificados no relatório das experiências-piloto.

 

MCEESMP – Muitos enfermeiros referem a pouca clareza dos critérios de referenciação para as unidades e equipas de saúde mental da RNCCI. Outros há que indicam que a sua operacionalização, em alguns casos, é pouco compreensível. Como comenta estas dificuldades num processo que deveria ser claro para todos os envolvidos?

MN – Considero compreensíveis as questões que são levantadas num contexto que é ainda novo para todos os envolvidos. Tenho a convicção de que o processo de referenciação é simples, claro e equitativo para quem já está mais envolvido neste processo, e que a maior parte da dificuldade reside no desconhecimento do Sistema de Informação da RNCCI, mas creio que lendo com atenção a caraterização das tipologias e os serviços que disponibilizam, na Portaria n.º 68/2017 de 16 de fevereiro, conseguimos encontrar a resposta mais adequada para o utente que queremos referenciar. Por outro lado, as Equipas de Gestão de Altas e as Equipas de Coordenação Local têm, entre outras funções, de apoiar os referenciadores.

No entanto, a minha expetativa é que revisão da Portaria n.º 68/2017, que se segue, permita clarificar estes e outros aspetos.

 

MCEESMP – As equipas comunitárias de saúde mental poderão ser também extremamente importantes para as pessoas com esquizofrenia. Contudo, também estas estão ainda num estádio mais embrionário do que seria desejável. Para quando se prevê a efetiva proliferação destas equipas e quais são os critérios para a determinação da sua localização geográfica?

MN – Estas equipas já existem há mais de 20 anos em vários serviços locais de saúde mental do país, mas não tiveram a expansão que todos desejávamos e que consolidaria uma resposta de âmbito comunitário como previsto no PNSM.

Felizmente, nesta legislatura, foi criada a oportunidade de se retomar este projeto absolutamente essencial. Encontramo-nos nesta altura a iniciar um período de experiências-piloto, que tem por objetivo consolidar o modelo de Equipa de Saúde Mental Comunitária (ESMC) e a respetiva carteira de serviços, após o qual se seguirá a sua expansão num total de cerca de 40 ESMCs para adultos e para a infância e adolescência, durante os próximos quatro anos, de acordo com o projeto incluído no Plano de Recuperação e Resiliência. É um objetivo ambicioso, que não se pode perder.

Segundo o PNSM, o critério principal para a localização das equipas será a escassez de respostas nesta área.

 

MCEESMP – Os familiares das pessoas com esquizofrenia tendem a sentir-se desamparados, muitas vezes exaustos e sem qualquer tipo de apoio. Que soluções existem ou se preveem para estas pessoas?

MN – A família não tem sido incluída no tratamento da pessoa com doença mental em geral e não tem o apoio de que precisa. Para os familiares da pessoa com esquizofrenia, o constrangimento que resulta da incompreensão da doença, a frustração de não conseguir ajudar o familiar doente, e as expetativas postas em causa perante uma doença crónica contribuem para comprometer a relação. Sendo a família um espaço privilegiado para a partilha de emoções e sentimentos, pode naturalmente transformar-se num espaço de tensão e conflito, que origina sobrecarga. Quando tal sucede, torna mais difícil a recuperação da pessoa com doença mental.

Com o novo estatuto do cuidador informal (ECI), também neste momento em experiência-piloto, penso que a atenção dada à família, e em particular ao cuidador informal, pode mudar, principalmente pela necessidade de perceber melhor o papel do cuidador informal, as suas dificuldades e as intervenções que podem ser efetivas.

Espero que esta atenção ao cuidador informal, juntamente com a maior expressão do modelo reabilitativo na formação dos profissionais e na dinâmica dos serviços de saúde, venha a traduzir-se numa mudança qualitativa.

 

MCEESMP – Se pudesse fazer e/ou mudar alguma coisa no sentido de facilitar o acesso das pessoas com esquizofrenia a cuidados de saúde, o que faria/mudaria?

MN – É um desejo meu antigo, trazer para a comunidade a Psiquiatria, designadamente através das equipas de saúde mental comunitária e da criação de programas de intervenção psicossocial nos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES). Parece-me a forma mais efetiva de facilitar o acesso das pessoas com doença mental aos cuidados de saúde, principalmente pelo que significa a presença de técnicos especializados na comunidade e que se traduz em maior proximidade de quem precisa, maior conhecimento da realidade e dos recursos existentes na comunidade, e maior facilidade de articulação e envolvimento com os Cuidados de Saúde Primários.

A presença de projetos nos ACES representa uma oportunidade para os profissionais dos Cuidados de Saúde Primários aprofundarem a compreensão dos fenómenos relacionados com a doença psiquiátrica, o que é ótimo para aumentar o conforto e segurança destes profissionais na abordagem das pessoas com doença mental. São projetos do PNSM incluídos no Plano de Recuperação e Resiliência, portanto, penso que são desejos possíveis de concretizar.

 

Muito obrigado pela sua amabilidade e partilha. Estamos certos de que as ideias por si partilhadas certamente ajudaram a esclarecer todos os enfermeiros, em particular os especialistas em ESMP, e a melhor compreender o que está a ser feito e aquilo que ainda falta fazer para dignificar a prestação de cuidados às pessoas com esquizofrenia.