Dia Mundial da Doença de Alzheimer - Entrevista

Dia:  21-09-2020

 

Comemora-se hoje, dia 21 de setembro, o Dia Mundial da Doença de Alzheimer. Considerando a prevalência e as implicações da patologia para a pessoa doente e para o(s) seu(s) cuidador(es), a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (MCEESMP) da Ordem dos Enfermeiros (OE) assinala a data com uma entrevista a dois enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (ESMP), Enf. Rita Costa (RC) e Enf. Sérgio Pimenta (SP), que exercem a sua atividade profissional na Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC) da Senhora da Hora (Matosinhos, Porto).

 

Na entrevista procuramos conhecer um pouco melhor o trabalho destes enfermeiros junto de pessoas com doença de Alzheimer e, desse modo, contribuir para a disseminação de boas práticas e enfatizar o papel preponderante que o enfermeiro especialista em ESMP pode ter na abordagem a pessoas com esta patologia.

 

MCEESMP – Assinala-se hoje, dia 21 de setembro, o Dia Mundial da Doença de Alzheimer. Quase todos já ouviram falar desta doença mas, afinal, em que consiste?

 

RC & SP – Trata-se de uma doença neurológica crónica, degenerativa, a mais frequente na população e que pertence a um grupo mais vasto que designamos por demências. A Doença de Alzheimer (DA), denominada assim pelo médico Alois Alzheimer, que a descobriu em 1907, é uma patologia crónica que afeta o cérebro, mais especificamente a região cortical. Provoca morte neuronal de uma forma mais acelerada do que aquilo que ocorre no envelhecimento natural. Desta destruição resultam défices nas diferentes funções cognitivas, como na orientação (tempo e espaço), na memória (inicialmente na memória para os acontecimentos recentes e posteriormente para acontecimentos e conceitos mais remotos), na linguagem verbal expressiva e compreensiva, nas funções executivas (raciocínio, resolução de problemas, planeamento e execução), entre outras. Estes défices levam inexoravelmente à perda de capacidade funcional, traduzindo-se em dependência para a realização das atividades de vida diária. Numa fase inicial a dependência será para as atividades instrumentais de vida diária, ou seja, aquelas atividades mais complexas do quotidiano, como por exemplo conduzir, gestão da vida financeira, etc. Com o progredir da doença a dependência instala-se também nas atividades mais básicas do autocuidado, inicialmente necessitando da orientação/supervisão de outra pessoa e posteriormente necessitando que outra pessoa a substitua na totalidade. A par com as alterações cognitivas e funcionais, existem alterações psicológicas e comportamentais que podem ser vastas e que diferem de pessoa para pessoa (na sua intensidade e até na sua ausência/presença) e de acordo com a fase da doença, como as alterações de humor (que podem passar pela depressão, pela euforia ou pela irritação), sintomas psicóticos (como por exemplo delírios ou alucinações), e o comportamento pode ser afetado, podendo existir agressividade, comportamento repetitivos, comportamento de oposição aos cuidados, e/ou agitação psicomotora.

 

MCEESMP – Quais são as potenciais consequências da Doença de Alzheimer? Esta afeta apenas a pessoa doente ou também tem implicações nas pessoas que a rodeiam?

 

RC & SP – Esse é, de facto, um ponto muito relevante. A DA não afeta apenas a pessoa, mas também as pessoas cuidadoras, bem como a família como um todo. Esta doença tem um impacto muito significativo no indivíduo que a vivencia, visto que numa fase inicial este pode experienciar um sofrimento emocional intenso. O mesmo ocorre com o cuidador informal, que na maior parte das vezes é o cônjuge, e que numa evolução que poderá ser de anos vai assistindo à perda de capacidades, a alterações de comportamento, que muitas vezes implicam agressividade, alterações que dificultam a execução do próprio cuidado (por exemplo, a recusa em tomar banho, comer, etc.), a falta de reconhecimento da pessoa que cuida. A inicial falta de conhecimento sobre a doença e de competências desenvolvidas para cuidar, aliados muitas vezes à falta de suporte e ajuda instrumental no cuidado, geram stress e sobrecarga do cuidador. O impacto na condição económica da família, por perda de rendimento (no caso de abandono laboral do cuidador, por exemplo) ou por novas necessidades que entretanto se colocam, é também um fator importante. A dinâmica familiar fica inevitavelmente alterada, quer pela alteração de papéis da pessoa com demência (o papel de pai/mãe, marido/esposa, por exemplo), quer pela alteração dos papéis desempenhados pelo cuidador.
O potencial para alterações do foro mental por parte do cuidador é considerável, sendo que estas podem passar por stress intenso, sobrecarga do cuidador, até alterações do foro psicopatológico. A saúde física do cuidador também pode ser afetada porque a pessoa se foca no outro, na pessoa de quem cuida, relegando muitas vezes a sua saúde para segundo plano. De acordo com os National Institutes of Health (2015), existem estudos que ligam a prestação de cuidados informal a um maior risco de determinadas patologias, como a doença cardíaca, o cancro, a obesidade, a ansiedade e a depressão.

 

MCEESMP – E relativamente ao futuro, quais são as previsões, em Portugal e no mundo, relativamente à evolução da Doença de Alzheimer?

 

RC & SP – Em termos do presente, e pelo que já sabemos, não nos encontramos muito bem colocados quando nos comparamos com outros países. Dados do relatório da OCDE “Health at a Glance 2017” (OCDE, 2017) colocam Portugal no quarto lugar ao nível do número de casos de demência dos países da OCDE. A medida é de 14,8 casos por cada mil habitantes, sendo que em Portugal temos 19,9 casos por cada mil habitantes, o que corresponde a 205 mil pessoas com demência em Portugal. Até 2037 estima-se que existam 322 mil casos em Portugal, ou seja, em aproximadamente 20 anos espera-se um aumento de cerca de 50% do número de casos. Como a DA, de acordo com a OMS (2019), é o tipo de demência mais comum, representando 60% a 70% dos casos, esta previsão é preocupante.

 

 

MCEESMP – Sabemos que na UCC da Senhora da Hora é realizado um trabalho específico centrado nas pessoas com Doença de Alzheimer. Podem dar alguns detalhes acerca do trabalho que é realizado?

 

RC & SP – A UCC da Senhora da Hora iniciou a sua atividade em 2009, e em 2010 iniciou-se o projeto de Enfermagem “Viver com Demência”. Trata-se de um projeto de acompanhamento de proximidade a pessoas não apenas com DA mas com qualquer tipo de demência, bem como os seus cuidadores, nas várias fases de evolução. O objetivo é aumentar a qualidade de vida do utente e do cuidador familiar. Estes utentes chegam-nos referenciados pelas equipas de saúde familiar da área de abrangência da UCC, pelos profisisonais de serviços hospitalares e pelos parceiros da comunidade integrados na rede social. A abordagem inicial consiste na avaliação das necessidades da pessoa com demência, do seu cuidador e contexto familiar, social e ambiental. É realizada uma avaliação cognitiva e funcional da pessoa com demência e, igualmente essencial, a avaliação do cuidador no que respeita à consciencialização da situação que vivencia, aos conhecimentos e habilidades, bem como sinais de sobrecarga física e emocional ou presença de stress do prestador de cuidados. De acordo com a avaliação global efetuada é estabelecido um plano terapêutico em conjunto com o cuidador e, sempre que possível, com a pessoa com demência. Esta parceria de cuidados é fundamental para o envolvimento de todas as partes e o desenvolvimento do plano terapêutico com eficácia e satisfação. A nossa intervenção é realizada preferencialmente em contexto domiciliário, permitindo-nos ter uma visão mais pormenorizada e real de todo o contexto, das necessidades, dificuldades e fatores protetores / facilitadores das pessoas que cuidamos. O plano terapêutico individual e de proximidade pode incidir na psicoeducação e suporte emocional dos cuidadores, na estimulação cognitiva ou treino cognitivo da pessoa com demência, e gestão do ambiente que promova a autonomia, a estimulação e bem-estar de ambos. Estas modalidades de intervenção poderão ser realizadas individualmente e/ou em grupo. A avaliação dos resultados é realizada periodicamente, de acordo com o tipo e duração da intervenção.
É importante realçar a interação e partilha de experiências que tentamos todos os anos proporcionar aos nossos utentes e cuidadores nas atividades comunitárias organizadas pelo Núcleo de Enfermeiros de Saúde Mental e Psiquiátrica da ULSM (NEESM), mais especificamente no Dia Mundial da Doença de Alzheimer, dia 21 de Setembro. Em 2019 a atividade foi alusiva à Terapia de Snoezelen. Este ano, mesmo face à situação que vivemos, vamos proporcionar, com todas as medidas de segurança, uma sessão de cinema relacionada com a demência. Esta é uma atividade realizada pelo NEESM e pelo Serviço de Neurologia do Hospital Pedro Hispano, favorecendo a interligação de cuidados e uma abordagem multidisciplinar.

 

MCEESMP – E relativamente a projetos futuros ao nível da intervenção, estão a preparar algo novo ou existe alguma área que vos pareça precisar de maior atenção?

 

RC & SP – A caraterística da nossa equipa, constituida por três enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica é, para além da coesão, estarmos sempre à procura de inovar, de forma a podermos oferecer aos nossos utentes cuidados especializados e que vão ao encontro das suas necessidades. Portanto, ideias não nos faltam e felizmente ao longo destes anos, percebemos que houve uma grande evolução nos cuidados que prestamos, com novas modalidades de intervenção mais especializadas e específicas.
Um dos projetos que está planeado mas que a realização foi adiada por gestão de recursos e pela necessidade de nos especializarmos em áreas complementares, e ainda pela atual situação da pandemia, trata-se do programa de Promoção da Saúde Mental do Cuidador ”Cuidar-Me”. Este surge na sequência do programa de capacitação de cuidadores da pessoa com demência, com vista a dar continuidade às intervenções e sessões iniciadas com este programa psicoeducativo. O projeto tem como base olhar para o cuidador não apenas como um recurso que necessita de informação e formação, mas também como um indivíduo, que deve ser foco de atenção dos cuidados de Enfermagem. Foi planeado um conjunto de sessões em grupo com base numa abordagem cognitivo-comportamental, com intervenções orientadas pela Teoria das Transições (Meleis et al., 2000) e desenhadas de acordo com o modelo de intervenção psicoterapêutica em Enfermagem de Sampaio et al. (2018). Este projeto possibilita analisar vantagens e desvantagens de diferentes estratégias, discutir soluções alternativas, encorajar a análise da rede de apoio, orientar para importância da equipa de suporte, orientar sobre estratégias para lidar com os pensamentos negativos, e sensibilizar para adoção de práticas promotoras de uma saúde mental mais positiva.

 

MCEESMP – E no caso concreto do enfermeiro especialista em ESMP, qual é o papel que este pode ter na abordagem à Doença de Alzheimer e que possa ser considerado diferenciador? Porque é importante que uma pessoa com Doença de Alzheimer seja acompanhada por um enfermeiro especialista em ESMP?

 

RC & SP – Consideramos que o enfermeiro especialista em ESMP tem um papel relevante na abordagem às demências, e que o torna de facto diferenciador. As competências específicas que detém, a natureza particular da relação que constrói com a pessoa alvo dos seus cuidados, relação próxima, empática, livre de juízos de valor, a relação verdadeiramente terapêutica, em que o enfermeiro se utiliza enquanto instrumento terapêutico, mobilizando competências psicoterapêuticas, socioterapêuticas, psicossociais e psicoeducacionais durante o processo de cuidar da pessoa, da família, do grupo e da comunidade, ao longo do ciclo vital, tal como definido no Regulamento das Competências Específicas do Enfermeiro Especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (2018).
Como enfermeiros intervimos num leque alargado de problemas que identificamos neste contexto, baseados em diagnósticos de Enfermagem e que são sensíveis à nossa atuação, gerando indicadores de resultado em Enfermagem positivos e, consequentemente, ganhos em saúde. Assim, importa que tenhamos um papel essencial na promoção e prevenção, no diagnóstico e no acompanhamento das pessoas que vivem estes processos de transição.
Também temos um papel essencial no que respeita ao cuidador, nomeadamente na otimização do papel do prestador de cuidados, prevenindo o stress e evitando a sobrecarga do prestador de cuidados, tal como refere Sequeira (2007). Relativamente à pessoa com demência, o nosso papel, enquanto enfermeiros especialistas em ESMP, passa pela gestão das emoções, pela adaptação face ao processo de transição que vive, e pela promoção da sua autonomia através de intervenções psicoterapêuticas sistematizadas.
O enfermeiro especialista em ESMP intervém também na comunidade, procurando contribuir para uma abordagem mais sistémica que possa contribuir para a obtenção de ganhos em saúde. São exemplos disso as atividades comunitárias para aumento da literacia em saúde neste domínio específico.

 

Muito obrigado pela vossa partilha, na certeza de que as ideias apresentadas poderão servir como um incentivo à disseminação de boas práticas em ESMP na abordagem à pessoa com Doença de Alzheimer e ao seu cuidador informal!