Testamento Vital: uma necessidade? - Artigo de opinião do Enf. Sérgio Deodato publicado no jornal «Público»

Testamento Vital: uma necessidade? - Artigo de opinião do Enf. Sérgio Deodato publicado no jornal «Público»

Testamento Vital: uma necessidade?


Temos assistido ultimamente a alguma discussão sobre o denominado «testamento vital». Tem sido sobretudo realçada uma análise do assunto a partir da ideia da necessidade de criar um instrumento jurídico onde se inscreva a vontade das pessoas sobre os cuidados de saúde que querem e não querem receber, em situação de fim de vida. A isso tem-se chamado testamento vital.

Ora, em primeiro lugar parece-me que devemos reflectir um pouco sobre esta denominação. O termo testamento corresponde ao conceito jurídico de disposição de património, para além da vida. Ou seja, no testamento, inscrevemos as coisas que pretendemos atribuir aos outros, depois da nossa morte. Assim, no caso em apreço, tratando-se de decidir sobre cuidados de saúde que se consentem ou se recusam no período final da vida, não corresponde ao conceito de testamento, pelo que desaconselho o seu uso.
A expressão hoje juridicamente consagrada de vontade anteriormente manifestada sintetiza o pretendido, quanto ao fim e quanto ao conteúdo. De facto, o que está em causa é garantir que qualquer pessoa veja respeitada a sua vontade quanto aos cuidados de saúde, quando se encontrar numa situação de impossibilidade de decidir, em fim de vida. Ou seja, que mecanismo jurídico permitirá que a vontade anteriormente manifestada seja tida em conta pelos profissionais de saúde. Digo profissionais de saúde uma vez que os cuidados de fim de vida são prestados por diversos profissionais e, no quadro jurídico actual, cada profissional decide e responde de forma autónoma pelos actos que pratica. Pelo que, a vontade das pessoas é dirigida não a um, mas a todos os profissionais que constituem a equipa de saúde.

Mas, voltando ao essencial, importa questionar se será mesmo necessária a criação de tal instrumento jurídico?
Para reflectir a resposta, olhemos ao regime jurídico actual. A Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, ratificada para o direito interno pelo Decreto do Presidente da República nº 1/2001 de 3 de Janeiro e pela Resolução da Assembleia da República nº 1/2001 de 3 de Janeiro, constitui a principal fonte jurídica para o consentimento em saúde. Ela dispõe, no seu artigo 9º, que a vontade anteriormente manifestada no tocante a uma intervenção médica por um paciente que, no momento da intervenção, não se encontre em condições de expressar a sua vontade, será tomada em conta. Lendo intervenção médica como qualquer intervenção no domínio da saúde realizada por qualquer profissional, concluímos que a vontade das pessoas anteriormente manifestada deve ser sempre tida em conta.

Então o que faz falta? Determinar a forma de manifestar essa vontade, ou seja, decidir sobre se é necessário um documento próprio?
E se a lei impuser a necessidade de documento escrito, isso significa que as outras formas de manifestar a vontade – expressar a um familiar, por exemplo – não serão tidas em conta pelos profissionais?
E se entretanto, no espaço que medeia entre a elaboração do documento e a real situação de doença, a pessoa mudar de ideias, qual vontade prevalece? É que as decisões que tomamos na vida resultam das circunstâncias exteriores que se alteram no tempo, o que nos obriga a garantir aos cidadãos que isso será tido em conta.

Assim, e face ao exposto, será que necessitamos de alterar o regime jurídico vigente? Ou será que o que precisamos mesmo é de um forte investimento na formação ética, deontológica e jurídica dos profissionais de saúde que lhes permita aplicar as normas já existentes aos reais e complexos casos com que lidam no seu dia-a-dia?


Sérgio Deodato
Presidente do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros
Professor de Direito da Saúde

Divulgado no Espaço Cidadão a 24.03.10 

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