Posição pública da Ordem dos Enfermeiros enviada ao Sr. Ministro da Saúde relativamente às Unidades de Cuidados na Comunidade na reconfiguração dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal

Posição pública da Ordem dos Enfermeiros enviada ao Sr. Ministro da Saúde relativamente às Unidades de Cuidados na Comunidade na reconfiguração dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal

A reconfiguração dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), iniciada em 2006 e consubstanciada no Decreto-Lei n.º 28/2008, de 22 de fevereiro, tem implicado alterações estruturantes na organização e oferta de cuidados de saúde à população. Os objectivos desta reestruturação englobam: melhorar a acessibilidade aos cuidados; aferir de forma eficiente os recursos humanos alocados, garantindo o cumprimento de metas em saúde, através da utilização de indicadores elaborados para o efeito.

Esta reconfiguração, apesar da atual conjuntura de crise financeira, não desmotivou os enfermeiros. De forma consistente e promissora, contribuiu-se para a consolidação de um paradigma de prestação de cuidados que acreditamos estar a influenciar plenamente os Cuidados de Saúde Primários (CSP) – as Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC).

Estas unidades, com autonomia técnica e funcional, têm uma carteira de serviços específica cuja actividade se desenvolve em intercooperação com as demais unidades dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS). Realizou-se em 2009 um processo de candidaturas de UCC com a publicação do Despacho 10143/2009, de 16 de abril. Foram apresentadas cerca de 270 candidaturas a nível nacional, com respetivos planos de ação e constituição de equipas, para dar resposta a uma vasta carteira de serviços das UCC. Neste momento existem 158 UCC a funcionar desde 18 de dezembro de 2009, data em que foram inauguradas as primeiras 18 UCC a nível nacional.

Estas Unidades Funcionais são compostas por uma equipa multidisciplinar (enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes socais, nutricionistas, entre outros), coordenadas por um enfermeiro que visa prestar cuidados assistenciais na comunidade, nomeadamente domicílios, escolas, empresas, entre outros.

Os enfermeiros desempenham neste âmbito um papel crucial, que se ajusta perfeitamente a uma das muitas vertentes da profissão: respondem aos três níveis de prevenção (ou de prestação de cuidados) primária, secundária e terciária, com enfoque específico no acompanhamento dos processos de transição das famílias, prevenção da doença, promoção da saúde e reabilitação, para além da dimensão curativa e paliativa. As UCC conseguem, se forem bem apoiadas, trazer benefícios para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ao proporcionarem cuidados no domicílio 7 dias por semana, evitando com certeza muitas idas desnecessárias aos serviços de urgência por parte dos utentes e suas famílias.

Igualmente o papel de coordenador da unidade multidisciplinar, assumido pelo profissional de Enfermagem, é uma alteração ao status quo que tem suscitado, naturalmente, algum confronto entre poderes instituídos.

Subsequentemente, a organização da oferta de cuidados tem por filosofia os princípios que regem a Enfermagem, com ganhos evidentes para os cidadãos ao nível da acessibilidade, equidade, promoção, prevenção, proximidade, acompanhamento, dinamização e gestão, no que diz respeito às necessidades de saúde dos utentes do SNS. Estes domínios estão perfeitamente contextualizados e são orientados de acordo com variáveis pessoais, familiares e sociais. Tudo isto é inovador quando pensamos na forma como está norteada a disponibilização dos cuidados de saúde: centrada nos profissionais e no contexto clínico, quando deveria estar focalizada na pessoa / cliente e no seu ambiente vivencial.

O Sistema de Saúde Português investiu nas últimas décadas predominantemente na área dos cuidados secundários e na hospitalização. Ainda que tenham sido ensaiadas várias experiências na organização dos CSP, desde que foi criado o SNS, não verificamos uma adequada avaliação de resultados que reflita uma mudança dos processos e uma melhor resposta às necessidades da população.

A própria Troika enfatiza a necessidade de investir nos enfermeiros ao afirmar que «Tendo em consideração que o rácio de 1,5 enfermeiros por médico, observado em Portugal para 2010 se encontra abaixo do valor médio dos países da UE, de 3 enfermeiros por médico, e tendo em conta o impacto ao nível de custos que poderá advir de uma utilização de médicos em cuidados que poderiam ser prestados por enfermeiros, a passagem para uma situação mais sustentável poderia assentar no reforço da oferta de enfermeiros, no aumento das suas atribuições e na valorização da profissão de enfermagem, reservando a prestação de cuidados médicos para a prestação daqueles cuidados relativamente aos quais apenas e somente a competência médica é capaz de prover.»

Neste sentido, reforçamos a orientação da Organização Mundial de Saúde (OMS) no que se refere ao papel central dos CSP e neles, pelo papel de coordenação, ligação e cuidados prestados, os enfermeiros.

No entanto, existem algumas dificuldades com as quais as 158 UCC ainda se deparam, sentindo-se os seus profissionais relegados para segundo plano na sua importância quanto aos cuidados de proximidade.

Passaremos, então, a referenciar alguns constrangimentos:

Falta de uma efetiva contratualização:

Apesar das várias propostas realizadas pelo Grupo Técnico para o Desenvolvimento dos Cuidados de Saúde Primários no que diz respeito a indicadores de contratualização, a mesma ainda não existe, o que impede a respetiva implementação dos objectivos propostos.

Falta de profissionais de Enfermagem:

A ausência de flexibilidade na contratação de enfermeiros, com significativo número de desempregados no mercado de trabalho, ou obstáculos à mobilidade por parte dos Hospitais, levam a que tenha vindo a aprofundar-se a subdotação em meios humanos nas UCC, que integram igualmente as Equipas de Cuidados Continuados Integrados (ECCI). A razão apontada é a necessidade de autorização ministerial para o recrutamento de novos enfermeiros, de modo a atingir o ratio preconizado: 1 enfermeiro / 5000 residentes.

Subaproveitamento de profissionais especializados:

Existem enfermeiros especialistas que teriam todo o interesse em desempenhar as suas funções no âmbito da sua especialidade nos Cuidados de Saúde Primários. Muitos deles são subaproveitados na instituição hospitalar onde exercem cuidados de Enfermagem geral, assim como em outras unidades funcionais dos ACeS, pois não existe a possibilidade de os substituir por outros enfermeiros de cuidados gerais.

Lista de espera para Cuidados de Enfermagem de Reabilitação e outros:

O número de horas de Cuidados de Enfermagem de Reabilitação é inferior às horas de cuidados necessárias, levando à existência de lista de espera. Existem projectos de promoção da saúde na área da Reabilitação, como por exemplo aos doentes do foro respiratório, que com a intervenção do enfermeiro especialista melhorariam a sua qualidade de vida e, consequentemente, diminuiriam os gastos inerentes aos processos de doença, nomeadamente em oxigenoterapia e aerossolterapia, que representam um grande peso no orçamento da Saúde. Ter enfermeiros especialistas em Enfermagem de Reabilitação na comunidade permitiria, por exemplo, altas mais precoces nos pós-operatórios de ortopedia e outras cirurgias, diminuindo os tempos de internamento. Existem casos em Inglaterra que diminuíram o tempo de internamento no pós-operatório de Ortopedia de 14 para 4 dias.

Para tornar os cuidados sustentáveis tem de se promover estilos de vida saudáveis e envelhecimento ativo e deve-se desenvolver o suporte aos cuidadores como prioridade, o que nem sempre acontece.

Projectos de promoção da gestão do regime terapêutico no adulto e idoso; de prevenção de quedas no idoso; de prevenção de úlceras de pressão no adulto / idoso dependente; de promoção de exercício físico no idoso; de promoção da Saúde Mental do adulto / idoso, nos jovens e nos locais de trabalho; preparação para o parto e parentalidade; saúde escolar; a intervenção multidisciplinar junto dos grupos mais vulneráveis; entre outros, deveriam ser prioritários. A capacitação da população para se responsabilizar pela sua própria saúde tem de ser uma realidade e uma prioridade e não se faz sem recursos nem tão pouco sem vontade política.

Falta de Assistentes Técnicos:

A subdotação de assistentes técnicos leva a que os profissionais de Enfermagem (valor / hora superior) realizem actividades administrativas retirando, inevitavelmente, horas à prestação de cuidados de Enfermagem.

Falta de acompanhamento / desigualdade de tratamento das UCC e ECCI:

A falta de profissionais a tempo inteiro nas Equipas Regionais de Apoio (ERA), nomeadamente de Enfermagem, inviabiliza as reuniões de acompanhamento das UCC, assim como das Equipas Coordenadoras Regionais (ECR) da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) relativamente às ECCI. Tal condição é per si geradora de iniquidade entre a população, que não tem as mesmas condições de acesso aos cuidados, e entre os profissionais, que prestam cuidados nas UCC e respectivas ECCI com ratios bem inferiores aos das Unidades de Saúde Familiares (USF), em piores condições de instalações hoteleiras e com menor remuneração pelos cuidados prestados. 

Desadequação da plataforma informática:

A duplicação de registos em várias plataformas informáticas (GESTCARE, SAPE e processo individual do utente) dos utentes em ECCI pode levar o enfermeiro a consumir até 60 minutos por utente. A própria plataforma SAPE não se encontra parametrizada à dinâmica da UCC, o que leva à utilização de registos paralelos em bases de dados criados para cada programa de saúde.

A Ordem dos Enfermeiros está totalmente disponível para, em conjunto com o Ministério da Saúde e a ACSS, ceder a última versão da CIPE® e trabalhar na parametrização do SAPE para a comunidade.

Desigualdade no pagamento das horas efetuadas ao fim de semana nas ECCI:

No que diz respeito ao pagamento das horas de fim de semana executadas na ECCI estas são pagas de forma desigual no âmbito nacional (horas suplementares / extraordinárias / ou em tempo).

Desadequação das instalações e falta de equipamentos:

Relativamente às instalações e equipamentos, verifica-se uma desadequação nas UCC/ECCI. Os materiais necessários ao desempenho da UCC e solicitados na candidatura não foram concedidos em muitos casos, nomeadamente espaço físico, equipamentos informáticos e outros materiais de apoio.

 

Como prioritário salientamos a necessidade de:

·      regulamentação desta Unidade Funcional e da sua carteira de serviços;

·      parametrização do SAPE para a comunidade;

·      definição de indicadores que permitam a avaliação;

·      monitorização nacional das UCC e posterior contratualização em 2013.

 

Urge assim:

1.    Contratualizar os serviços a prestar pelas UCC, colmatando as graves insuficiências há muito identificadas;

2.    Flexibilizar o mercado de trabalho de modo a permitir a existência de dotações seguras de profissionais, não só médicos mas de Enfermagem, assistentes técnicos e outros especialistas a partilhar;

3.    Definir incentivos adequados para os profissionais, conforme estabelecido para as Unidades de Saúde Familiar;

4.    Proporcionar instalações com boas condições hoteleiras, encerrando as ainda existentes em edifícios de habitação.

 

Em síntese, os enfermeiros proporcionam um importante contributo na melhoria da qualidade nas organizações. Os resultados observados num estudo de investigação (Indicadores de qualidade sensíveis aos cuidados de enfermagem em lares de idosos, Revista de Enfermagem Referência, vários autores, março 2011) permitem perceber que a introdução destes profissionais, de forma contínua, tem impacto direto na diminuição do recurso aos serviços de saúde (urgências e dias de internamento), na redução do número de quedas, no controlo da dor, no controlo de infeção, na diminuição da intervenção médica, no uso controlado de fármacos, na prevalência do número de úlceras de pressão e no aumento da funcionalidade.

Relembramos duas orientações europeias:

«1 Euro gasto na promoção da saúde, representa um ganho de 14 euros em Serviços de Saúde amanhã».

(Leger e Nutbean, 2000)

 «Um programa de Saúde Escolar efectivo … é o investimento de custo-benefício mais eficaz que um País pode fazer para melhorar simultaneamente, a educação e a saúde».

(Gro Harlem Brundtland, Diretora-Geral da OMS, 2000)

Ana Saianda