Entrevista “A ação do(a) enfermeiro(a) especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica durante o Período Perinatal e na Primeira Infância”

A área específica da Saúde Mental na Primeira Infância tem vindo a ganhar relevância pelo impacto que a intervenção precoce nesta faixa etária pode ter na promoção da saúde mental futura da criança. A relação mãe-bebé e a vinculação segura são pilares fundamentais no desenvolvimento harmonioso da criança. Numa consulta de primeira infância surgem frequentemente sintomas desadaptativos e precursores de psicopatologia decorrentes da relação mãe-bebé. São reportados na literatura como sendo frequentes alterações do sono, da alimentação, da regulação emocional, do processamento sensorial e do comportamento. Para as famílias, ter crianças com um comportamento desafiador torna-se também bastante complexo e desgastante.

O(A) enfermeiro(a) especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (ESMP) tem um papel preponderante na deteção precoce, intervenção e acompanhamento destas crianças e suas famílias. Na Unidade de Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia do Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE o(a) enfermeiro(a) especialista em ESMP desempenha um papel de elevada relevância na intervenção junto dos bebés e suas famílias.

 

Como tal, a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (MCEESMP) da Ordem dos Enfermeiros (OE) considerou relevante realizar uma entrevista à Sra. Enfermeira Maria João Nascimento (MJN), enfermeira especialista em ESMP, no sentido de esta partilhar a sua experiência ao nível da intervenção realizada na Consulta de Bebés Irritáveis, Consulta de Bebés Silenciosos, Grupos de Mães, Enfermagem de Saúde Mental de Ligação, entre outras.

 

MCEESMP – A Enfermeira Maria João tem um longo caminho percorrido de crescimento e trabalho na perinatalidade e nos grupos de mães e bebés. Pode falar-nos um pouco acerca desse percurso?

MJN – Fiz o curso na Escola Técnica de Enfermeiras há 35 anos e, mais tarde, dei continuidade na Escola Superior de Enfermagem Gentil Martins. Tal como a maioria dos jovens de hoje, naquela altura eu também não sabia bem o que queria fazer, fui atrás de uma ideia romantizada da profissão. Inesperadamente adorei o curso, algumas professoras excediam as minhas expectativas, e foram essas que eu guardei dentro de mim. Mas rapidamente me desencantei e pedi a demissão após três meses de trabalho árduo e solitário num serviço de Medicina. Cedo descobri o meu fascínio pela saúde mental, sem saber bem o que fazer com essa ideia. E assim, quando a dúvida e a incerteza se tinham instalado, fui desafiada por uma professora a integrar a equipa da UPI (Unidade de Primeira Infância), que atende bebés dos 0 aos 3 anos e suas famílias, do então Centro de Saúde Mental Infantil e Juvenil de Lisboa. Muitas descrições e boas memórias, muitas aprendizagens em equipa, muito bom acolhimento e orientação nos meus primeiros e inseguros passos na saúde mental. Fui a aprendiz e seguidora da querida Enfermeira Arminda Namora, aproveitei e convivi diariamente com profissionais exemplares e de aguçada perícia no que toca a observar e intervir junto de díades mãe/bebé. Rapidamente integrei em mim este gosto pelo trabalho em idades tão precoces, e assim que me foi dada a oportunidade fiz a especialidade em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, logo após dois anos de trabalho. Nessa altura os planos de estudos eram bem diferentes. Assim, após a especialidade, o meu interesse pela perinatalidade foi-se sedimentando, e as consultas de Enfermagem de Saúde Mental Perinatal foram aos poucos sendo complementadas com grupos de mães e bebés.

 

MCEESMP – Porque é que considera que a Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica tem um papel tão importante na área da perinatalidade?

MJN – A intervenção junto de mulheres grávidas, em grupos de “Preparação para o Nascimento”, foi o ponto de viragem para que o meu trabalho se fosse delineando com mães e bebés. Assim, a preparação das grávidas no âmbito da saúde mental e emocional tornou-se essencial na promoção da saúde mental da díade, na deteção precoce de sinais de alarme de depressão pós-parto e de alterações no desenvolvimento emocional do bebé, e na promoção do estabelecimento da vinculação. Trabalhar a perinatalidade leva-me sempre a ter em conta a família, as narrativas de vida dos presentes e dos ausentes, cujo peso emocional pode ser inibidor da capacidade de sonhar dessa mesma família. Grande parte da intervenção passa por conhecer o melhor possível os percursos de vida emocional que estão a trilhar, e ter a noção de que toda a família está em mudança, numa fase do ciclo de vida que pode ser assustadora e desequilibrante, mas que será o motor do crescimento individual e do autoconhecimento. É neste contexto que as competências do enfermeiro especialista em ESMP nos colocam, no meu ponto de vista, como os profissionais de eleição para este trabalho. A capacidade de escuta, a proximidade não intrusiva, a relação de ajuda, a mobilização dos vários saberes e disciplinas relativamente ao desenvolvimento do ser humano em todas as suas vertentes, faz de nós, enfermeiros especialistas em ESMP, os profissionais mais capazes para gerir e apoiar a família em crise, em especial as famílias com filhos muito pequenos.

 

 

MCEESMP – Qual o papel do enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica numa equipa de primeira infância?

MJN – Sempre trabalhei inserida numa equipa multidisciplinar e sempre procurei parceria com outras unidades de cuidados. Tal como as famílias necessitam de uma rede de suporte, também nós enfermeiros não podemos trabalhar isolados, a dinâmica da troca é sempre enriquecedora, o partilhar das diversas perspetivas é uma mais-valia na minha intervenção. Continuarei nesse percurso, porque de outra forma não me faz sentido. Recebo e atendo em consulta famílias com bebés nas várias fases de desenvolvimento, e com diversos níveis de preocupação, que vão de simples dúvidas, bebés irritados, bebés silenciosos, aos mais complicados diagnósticos, nomeadamente perturbações do espectro do autismo, anorexia, entre outros. Todas as problemáticas mobilizam saberes diferentes, ter a compreensão de que numa família cujo bebé não comunica, não olha a sua mãe, não devolve a interação tão esperada, emergem os piores sentimentos nos pais, nomeadamente sentimentos de rejeição, de impotência, de absurdo. Tal como estar perante um bebé que recusa comer mobiliza os medos da morte, a incerteza da sobrevivência, o sentimento de incapacidade de nutrir que é uma das competências maternas mais primárias. Reconhecer os nossos limites como profissionais e pessoas, reconhecer as emoções que nos impactam, reconhecer que nem tudo é rápido como gostaríamos, é uma parte importante de todo o processo de intervenção.

Como enfermeira especialista em ESMP sempre trabalhei no sentido de ser uma parceira para a família, sempre trabalhei no sentido da continuidade dos cuidados. A consulta termina, mas a ligação mantém-se, e as famílias nestas fases tão precoces necessitam de respostas mais rápidas, a ansiedade tem de ser travada para que não se instale a desorganização, e foi assim que sempre mantive linha aberta, materializada agora na linha SOS Saúde Mental do Bebé.

Sei que as minhas competências em ESMP foram sendo sedimentadas a par e passo, com a experiência e o trabalho com as famílias, e com a permanente necessidade de estudo e atualização teórica, que nunca é suficiente. A capacidade de escuta, a proximidade não intrusiva, a relação de ajuda, a continuidade, a confiança, o compromisso terapêutico, a disponibilidade, e sobretudo o oferecer-me como figura de estabilidade e referência terapêutica, são os pilares da minha intervenção. Ao acolher as preocupações e angústias torno-me parceira da família, recebo as ansiedades e medos e apoio na sua transformação, ressignificação, contenção, deixo-me observar e conhecer, e todos estes são itens que fazem parte do processo terapêutico. A relação que estabeleço com as famílias tem em conta a reciprocidade, e a certeza de que estarei sempre ao seu lado.

 

MCEESMP – A proximidade com o hospital também deu a possibilidade de desenvolver novos projetos. Pode falar-nos um pouco acerca desses projetos?

MJN – Trabalhei até 2017 fora do hospital, e no dia 1 junho desse ano integramos e criamos a equipa do CEBC (Centro de Estudos do Bebé e da Criança) dentro do Hospital de D. Estefânia, uma fusão entre a Pedopsiquiatria e a Pediatria do Desenvolvimento. Tem sido uma experiência muito interessante, com muitos desafios e oportunidades de crescimento em diversas vertentes, com colegas de outra especialidade e sem as quais já não imagino a vida. Claro que quem me conhece sabe que procuro sempre mais, e nesse sentido iniciei a intervenção de Enfermagem de Consultoria e Ligação nos Serviços de Internamento da Primeira Infância. Sempre que é necessário vou aos Serviços nos quais os bebés estão internados, quer em Serviços de Medicina, quer em Cuidados Intensivos, e cujas mães muitas vezes entram num processo de tristeza, ansiedade e também desorganização.

O contacto com os extremos da doença grave e prolongada deram-me espaço e necessidade para criar grupos de apoio e suporte. Qualquer um dos grupos tem continuidade via WhatsApp, onde gerir e conter a informação, num mundo virado para as redes sociais, é por vezes muito difícil. “Famílias Guerreiras” – neste grupo o bebé mantém-se internado e trata-se de um grupo bem diferente dos grupos de mães e bebés; “Café das Mães” – grupo no qual o bebé é um parceiro ativo e um dos objetivos é a promoção da saúde mental. Tratam-se de dois tipos de grupos, quase opostos, quer na expetativa, quer na esperança, quer no perspetivar o futuro. A intervenção psicoterapêutica, psicoeducacional e a dinâmica de grupo são obrigatoriamente diferentes. Têm em comum o grande amor das mães pelos filhos e a constante procura de uma melhor forma de viver a maternidade, apesar de tudo.

Também dou suporte em situações muito graves, e por vezes de luto inesperado, nas quais o apoio à equipa de cuidados passa também por aliviá-los nesses momentos, resguardando e assegurando assim que a rotina dos cuidados possa ser mantida. A presença até ao fim, junto das famílias em extremo sofrimento, é muitas vezes a única forma de apoio.

 

 

MCEESMP – Que recursos mobiliza para dar resposta a esses desafios?

MJN – Todos os dias me sinto desafiada e isso mantém-me interessada; no entanto, nada seria possível se não tivesse uma “mini-equipa” com quem me organizo, e me reencontro e discuto, e trabalho lado a lado. Tudo isto acontece sempre num contexto multidisciplinar, foi assim e será sempre assim que tudo se torna possível e que continuo a desbravar novas formas de existir enquanto profissional de Saúde Mental. Para mim, a resposta está nas ligações que estabelecemos, nas relações que cultivamos, em cada contexto uma forma diferente de estar, mas uma mesma vontade de comunicar e dar resposta. Sempre que acho que sou capaz de contribuir para o bem-estar emocional do outro, avanço, com a certeza de que me humanizo ao estar perante a humanidade do outro.

Para concluir, continuo sem saber se fiz a escolha certa ao enveredar pela área da Saúde Mental, já que a vida nos coloca permanentemente perante escolhas, e eu todos os dias faço escolhas. Porém, trabalhar na área da Primeira Infância resgata todos os dias a criança que vive em nós.

 

Muito obrigado por este momento de partilha e reflexão, pois certamente ajudará a elucidar todos(as) os(as) enfermeiros(as), e muito particularmente os(as) especialistas em ESMP, sobre a importância e pertinência de se investir na área da intervenção durante o Período Perinatal e na Primeira Infância.